Luísa Fresta
A segunda longa-metragem de Inês Oliveira estreia nas
salas portuguesas a 14 de Maio de 2015.
O filme reflecte um olhar intimista e austero e apresenta
uma vertente documental relevante. Nele se abordam aspectos culturais de
interesse público e também, sobretudo, o flagelo que é a mutilação genital
feminina, a coberto de uma tradição ancestral.
Duas mulheres de universos distintos encontram-se e
trocam experiências reais ou sonhadas, pesadelos e silêncios.
Mariama, uma empregada doméstica guineense e dama de
companhia sociável com múltiplas competências, entra na vida de Sofia, à sua
revelia, por via de uma mãe preocupada e atenta com a filha, fechada sobre si
mesma e os seus fantasmas, navegando perigosamente entre recordações dramáticas
e elucubrações que escapam ao seu controlo. Esta bizarra atmosfera é a sua
companhia diária, até que Mariama revoluciona as suas rotinas com
espontaneidade e curiosidade quase infantis, fazendo prova de uma amizade que
ultrapassa as convenções e espezinha sem cerimónias as normas de convívio social
das hodiernas urbes europeias. É o começo de uma intimidade cúmplice, discreta,
conquistada a pulso, que fere, esgota, incomoda ocasionalmente, mas abre enormes
janelas numa casa bolorenta e desoxigenada.
Sofia sai gradualmente da sua espessa concha,
timidamente, e abre os olhos para um mundo cheio de cor, de ritmos e de crenças
que lhe povoavam já os sonhos, ganhando energia, calor e textura.
O início deste filme é aliás marcado pela aparição de uma
figura mítica semelhante ao Tchinganje (termo usado em Angola) ou aos Caretos
portugueses, no pesadelo de Sofia. Quando esta é convidada para uma festa de
casamento guineense no coração de Lisboa, a sua visão do mundo turva-se ao encontrar
esse lado vibrante de um modo de vida que desconhecia. A arquitecta,
elegantemente vestida, sóbria, distante, ausente, enclausurada no seu reino de
sombras, é trazida para o meio de uma espiral de cores primárias e exuberantes.
Ritmos alucinantes invadem-lhe o espírito, o seu olhar adquire outra
profundidade.
(A cena é longa, propositadamente, creio, com uma
linguagem documental e visualmente muito rica – quase sem diálogos –, que
permite ao espectador observar sem ser visto num visionamento quase didáctico e
algo voyeur: mais do que uma recolha
de imagens, assemelha-se a uma captura global do ambiente – para o qual
contribui grandemente o exímio tocador de kora, mestre Braima Galissá). Faço igualmente
uma reverência especial à jovem actriz Luana Quadé (Bobô) e às três actrizes do
núcleo central: Paula Garcia, Aissato Indjai e Maria João Luís, sendo que a
segunda se adaptou na perfeição às suas colegas veteranas, soberbas na sua
contenção e credibilidade.
Sofia e Mariama, Mariama e Sofia vão assim confundindo
as suas vidas nos pesadelos e no desespero de ambas, construindo uma relação
muito para além dos limites profissionais. E as suas energias e atenção recaem
sobre uma menina doce, Bobô, em torno da qual unem forças e uma poderosa
corrente de amor, esperança e solidariedade.
Bobô é o futuro, a menina que se nega à crueldade cega
de uma tradição nefasta (embora já proibida por lei na Guiné Bissau, é uma
prática que assenta em convicções amplamente difundidas e portanto difícil de erradicar
apenas através do formalismo da Justiça).
Ela representa também o passaporte de Sofia para o
mundo real, com a sua dose de contradições e de dramas palpáveis, alguns deles
evitáveis.
Bobô é, finalmente, o livre arbítrio, a liberdade, o
factor de união entre mundos díspares e distantes. O ponto de confluência da
condição feminina.
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