sexta-feira, 11 de dezembro de 2015

Retrato literário da guerra moçambicana

 
Guerra. Ele viveu a guerra civil de frente. As suas mãos manejaram uma arma de fogo. Os seus dedos tocaram no gatilho por várias vezes. O seu corpo conhece os tremores que o medo da morte traz. Os seus olhos viram imagens que hoje lhe trazem dor e perturbam o seu sossego.
Augusto Macaba esteve na frente de combate e hoje combate a violência, através da escrita, mostrando os vários caminhos que ela tomaO livro“Caminhos da Violência” é a sua primeira obra, lançada recentemente em Maputo sob chancela da editora Ndjira.
Durante mais de 20 anos, batalhou para encontrar tempo para escrever, lutou para a publicação e isso só foi conseguido finalmente este ano.
O romance inicia com Zeca, personagem principal, aceitando o chamamento da Nação: “A pátria chama por nós”. Existe uma relação entre o percurso de Macaba na guerra e as trilhas a que Zeca nos conduz na obra.
A guerra de Augusto Macaba
Macaba foi a tropa em 1979. “Tinha 17 anos, meu nome foi indicado para o Serviço Militar Obrigatório (SMO). Era um imperativo nacional. Frequentava a 7.ª classe na Escola Secundária Josina Machel, cidade de Maputo. Fiquei abalado. Falei com o meu pai e ele tranquilizou-me. Disse que seria apenas por dois anos”, narra, com certa tranquilidade.
As informações sobre o decurso da guerra não chegavam à cidade devido à condição da época: os meios de comunicação (rádio, televisão, jornais, telefones) ainda não eram tão desenvolvidos como agora. Quando chegou à localidade de Malova, distrito de Massinga, província de Inhambane, o clima era outro: guerra. Macaba teve de combater. E como combateu!
“A guerra é um terror absoluto. A guerra não presta”, disparou, visivelmente incomodado.
No ano de 1984, Macaba saiu da guerra. Ele argumenta que foram os problemas de saúde que o tiraram do fogo cruzado. “Tenho um problema de saúde crónico: hérnia discal na coluna cervical. São coisas que doem muito”, conta.
Quando regressou à casa, vivo, sem nenhuma lesão corporal, a família acolheu-o e a mãe disse, religiosamente: “As minhas preces resultaram”.
Lembranças. Sim, foi com base nas recordações dos momentos trágicos da guerra e uma grande dose de imaginação que Macaba redigiu a obra. As recordações mexem nele, perturbam, ferem, mas são um mal necessário.
Depois da guerra, ele não mais retornou aos locais em que combateu. “Sinto nostalgia. Até tenho vontade, mas talvez um dia”.
Ficção ou realidade, realidade ou ficção
O Real e o imaginário confundem-se em “Caminhos da Violência”. Macaba mesclou os momentos que viveu na guerra e conferiu um toque de ficção para dar outro sabor à sua primeira obra.
Zeca, o personagem elementar do romance, é o epicentro de toda essa fusão. Podemos dizer que Zeca é a personificação da passagem de Macaba na guerra. O seu trajecto é similar a do autor, exceptuando alguns aspectos, como o facto de Zeca continuar na guerra até ao seu fim.
“Zeca é a encarnação do sofrimento da guerra. Do teatro macabro da guerra. É a imagem do sofrimento, da dor, do caos, da resistência, da sobrevivência. Zeca é o espelho da tristeza: um milhão de moçambicanos mortos e milhões de moçambicanos deslocados”, anota o escritor.
Como um repórter de guerra, Macaba, através de Zeca, imerge no cenário de guerra e narra os factos: “Inicialmente pensei em contar a estória na primeira pessoa, mas com o passar do tempo optei por narrar na terceira pessoa, pois possibilita maior abrangência”. Em termos práticos, possibilita manipular as personagens a seu bel-prazer.
Na obra, o autor investiu nos diálogos. O romance é cheio de conversas. Os diálogos dão outra dinâmica à estória.
Na guerra, o amor não tem espaço mas, em “Caminhos da Violência”, Macaba conseguiu arranjar um: “O amor dá musicalidade e melodia ao romance. É o tempero necessário para uma bela estória”.
O autor desta obra conhece a gramática da guerra, todos os vocábulos e regras que a compõem. No seu percurso, neste acontecimento histórico, Macaba participou num número considerável de operações.
Mas uma operação não sai da sua cabeça e, para eternizá-la, transportou-a para o livro: A “Operação Quinquagésimo Aniversário”.Foi algo marcante. Esta operação tinha como finalidade vencer a guerra e oferecer esta vitória ao então Presidente Samora Machel, pelo seu quinquagésimo aniversário natalício. Nesta operação, várias bases do adversário caíram”. Mas a intenção não foi alcançada. E a guerra continuou.

Sem ideologias
A Guerra é uma chacina. Indivíduos matam-se e usam a ideologia como desculpa. Irmãos derramam sangue por causa das suas diferenças e, no fim, percebem que o sangue que jorra dos seus corpos é igual.
“Na guerra, o vencedor é o perdedor. Os intervenientes perdem com a guerra: vários dos seus soldados morrem. O povo perde com a guerra, escolas são destruídas, hospitais são destruídos, infra-estruturas são destruídas. Enfim, o país perdeu com a guerra civil”, sublinha.
Em Macaba, o lado humano sobrepõe-se ao ideológico. Não é a ideologia que vinga, mas a dignidade do ser humano”, sintetiza o escritor Suleiman Cassamo, no prefácio da obra. Em “Caminhos da Violência”, Augusto Macaba distancia-se da parte ideológica e foca-se no drama vivenciado pelos intervenientes na guerra. “Procurei não trazer a ideologia das partes envolvidas na guerra: o Governo e a Renamo.”
Guerra contra guerra
O Livro é um desabafo. Nele, Macaba expressa o seu sentimento de repulsa à guerra, através da voz das personagens e dos comentários leves do narrador.
A ideia do autor é recordar aos mais velhos o que foi a guerra, mostrar às novas gerações a guerra crua e dura como é. “Espero que assim não voltemos a repetir os mesmos erros. Dá-me calafrios pensar no retorno à guerra”, comenta.
O que leva à violência? Macaba aponta três sentimentos: ódio, revolta e espírito de vingança. “Mas, para entender a manifestação da violência, temos de perceber em que contexto ela surge, quais as motivações que levam os homens ao ódio e à revolta. O meio social em que os homens vivem, a sociedade é a culpada”, sublinha.
Na visão do autor, é preciso conhecer as motivações do comportamento desviante para poder-se modificá-lo. “De pequeno se torce o pepino. Temos de conhecer os caminhos que levam à violência para combatê-la”, refere.
O romancista não tem dúvidas de que a guerra é a manifestação máxima da violência. “A guerra surge pelos três sentimentos, ódio, revolta e vingança, e por algumas ambições pessoais (políticas e económicas) ”.
Quanto aos vestígios de certa instabilidade político-militar que se vivem em Moçambique, Macaba, como a maioria dos moçambicanos, apela ao diálogo. “Através da conversa podemos resolver as diferenças”, apela.
O livro da vida de Macaba
Em 1978, três amigos prometeram escrever uma obra. Dois fizeram juras da boca para fora, mas Macaba levou aquela promessa consigo. Até no calor da guerra guardou aquele juramento. Depois da experiência macabra que passou na frente de combate, decidiu escrever. Fez alguns rabiscos incipientes e logo percebeu que faltava algo: tinha de ter métodos, ferramentas para redigir.
Como a maioria, iniciou na leitura, com as clássicas bandas desenhadas. Depois experimentou outros voos.
“Lia muito. Aprendi muito. Conheci autores como Herold Robbins, Hans Helmut Kirst, Leon Uris, Frederick Foreshity, Irving Wallace. Alguns dos livros retratavam a guerra. A Primeira e a Segunda Guerra Mundial. Em Moçambique li autores como Luís Bernardo Honwana, Mia Couto, Ungulani Ba Ka Khosa, Aldino Muianga, entre outros.” Com a leitura ganhou a experiência necessária para escrever com firmeza.
No entanto, o trabalho foi um obstáculo para a escrita. “Trabalhava em turnos, não tinha tempo para repousar e escrever. Existia um dia de folga, que reservava para a família e para o lazer. Nas férias poderia ter apenas 30 minutos para escrever”.
Macaba conta que para ter mais tempo para a escrita ensinou a sua filha mais nova a omitir mas, como crianças são crianças, passou por um embaraço. “Quando ficava a escrever não queria incómodo. Pedia que a minha esposa escondesse aos meus amigos que estava em casa. Um dia, um amigo veio e ela seguiu as recomendações, disse que não estava, minha filha mais velha, que ainda era criança, desmentiu-a: papa está, mamã está a mentir”. Sem argumentos, Macaba teve de sair e atender o amigo.
Estava complicado escrever. “Existiam dias em que não saía nenhuma página. Noutros saíam dois parágrafos”.
Apesar das dificuldades, Macaba tinha a certeza de que o livro sairia, até já tinha o título. “Foi uma das primeiras coisas a fazer. Escrevia de forma leve, com calma, via e revia os textos à procura do toque certo: a qualidade.”
Rigor. “Tenho de ser exigente comigo próprio, tenho de ter a certeza de que o que escrevo me comoveu, pois o público é exigente.
Os vários manuscritos, cadernos, folhas dispersas provam o trabalho executado. Em alguns dos cadernos existem páginas recortadas e alguns borrões. Apesar do esforço, Macaba precisava de tempo para concluir a estória.
Estabilidade profissional
Depois de sair da guerra, Macaba já havia perdido motivação para estudar. Mas, por incentivo de amigos, voltou a pegar na caneta que havia trocado por uma AK-47. Fez uma formação na Escola Aeronáutica e ingressou nos Aeroportos de Moçambique como operacional. Em 2000 concorreu e ingressou na Unidade de Formação e Investigação em Ciências Sociais (UFICS). Fez o bacharelato em Ciência Política e licenciou-se em Administração Pública, em 2006. Actualmente é técnico superior de Comunicação e Imagem na Direcção de Marketing na Sede dos Aeroportos de Moçambique.
Mas o que isso tem a ver com a vida literária de Macaba? Tempo, quando muda de cargo ganha mais tempo para a escrita. Termina a obra em 2010 e procura os mecanismos para a publicação da obra.
O lançamento
A obra, de 311 páginas, foi lançada no início do mês de Novembro.
A luta para a publicação do livro durou cinco anos. A primeira batalha foi a aceitação da obra por parte da editora. “Mostrei o livro à Ndjira; eles apreciaram durante um ano. Disseram: “Nós não costumamos lançar a primeira obra de um novo autor, desconhecido, na categoria romance (género sublime, mais elevado da literatura). Mas pela qualidade da obra aceitaram o desafio”.
Mas ainda faltavam duas etapas. “Tinha de arranjar patrocínio e um prefaciador (padrinho). Consegui o patrocínio e Suleiman Cassamo leu a obra e fez o prefácio de que tanto gosto”. 
Augusto Macaba não desistiu, pois sabia que era capaz. “Fui persistente, venci as adversidades para a realização do meu sonho”, lembra.
Agora, Macaba respira de alívio, olha para a sua obra sorridente na estante da sala. “Espero ansiosamente pela reacção dos leitores. Amigos e conhecidos mostraram o seu parecer satisfatório e espero ouvir mais reacções.”
Demorou mais de 20 anos para lançar a primeira obra, mas adianta que a próxima levará menos tempo. “Já conheço os mecanismos, agora estou a pensar numa nova obra. Estou em dúvida se continuo com a temática da guerra ou escolho outro tema”, promete.
Apesar das dúvidas, uma certeza existe: a obra vai sair.
Família
Macaba morra no bairro Patrice Lumumba, perto do Estádio da Machava. Neste bairro passou a sua infância. Por estar perto do estádio escuta os gritos das vitórias dos “Mambas” e é obrigado a ouvir barulho dos golos contra a nossa selecção.  
O ano de 1989 é marcante para Augusto Macaba e dona Lúcia da Graça Mula. Naquele ano celebraram o lobolo. Macaba não recordava o dia exacto, mas a sua companheira recordou-lhe: “Foi no dia  30 de Junho que ele me lobolou”.
Por pouco a data ia ser alterada. “O pai de dona Lúcia da Graça é um amante do blues. Nesse dia, Eric Clapton tocava no Estádio da Machava e ele queria estar lá, mas já não havia como alterar a data”.
O sogro de Macaba teve de se conformar em escutar o concerto de longe e com interferência dos cânticos e palmas típicos dos lobolos.

O casal tem três filhos, duas meninas e um menino. Eles acompanham a obra do pai, leram as páginas do livro ainda manuscritas e até deram sugestões.
jornal notícias de maputo

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