Guerra. Ele viveu a
guerra civil de frente. As suas mãos manejaram uma arma de fogo. Os seus dedos
tocaram no gatilho por várias vezes. O seu corpo conhece os tremores que o medo
da morte traz. Os seus olhos viram imagens que hoje lhe trazem dor e perturbam
o seu sossego.
Augusto Macaba esteve na
frente de combate e hoje combate a violência, através da escrita, mostrando os
vários caminhos que ela toma. O livro“Caminhos da Violência” é a
sua primeira obra, lançada recentemente em Maputo sob chancela da editora
Ndjira.
Durante mais de 20 anos,
batalhou para encontrar tempo para escrever, lutou para a publicação e isso só
foi conseguido finalmente este ano.
O romance inicia com
Zeca, personagem principal, aceitando o chamamento da Nação: “A pátria chama
por nós”. Existe uma relação entre o percurso de Macaba na guerra e as trilhas
a que Zeca nos conduz na obra.
A guerra de Augusto
Macaba
Macaba foi a tropa em
1979. “Tinha 17 anos, meu nome foi indicado para o Serviço Militar Obrigatório
(SMO). Era um imperativo nacional. Frequentava a 7.ª classe na Escola
Secundária Josina Machel, cidade de Maputo. Fiquei abalado. Falei com o meu pai
e ele tranquilizou-me. Disse que seria apenas por dois anos”, narra, com certa
tranquilidade.
As informações sobre o
decurso da guerra não chegavam à cidade devido à condição da época: os meios de
comunicação (rádio, televisão, jornais, telefones) ainda não eram tão
desenvolvidos como agora. Quando chegou à localidade de Malova, distrito de
Massinga, província de Inhambane, o clima era outro: guerra. Macaba teve de
combater. E como combateu!
“A guerra é um terror
absoluto. A guerra não presta”, disparou, visivelmente incomodado.
No ano de 1984, Macaba
saiu da guerra. Ele argumenta que foram os problemas de saúde que o tiraram do
fogo cruzado. “Tenho um problema de saúde crónico: hérnia discal na coluna cervical.
São coisas que doem muito”, conta.
Quando regressou à casa,
vivo, sem nenhuma lesão corporal, a família acolheu-o e a mãe disse, religiosamente:
“As minhas preces resultaram”.
Lembranças. Sim, foi com
base nas recordações dos momentos trágicos da guerra e uma grande dose de
imaginação que Macaba redigiu a obra. As recordações mexem nele, perturbam,
ferem, mas são um mal necessário.
Depois da guerra, ele
não mais retornou aos locais em que combateu. “Sinto nostalgia. Até tenho
vontade, mas talvez um dia”.
Ficção ou realidade,
realidade ou ficção
O Real e o imaginário confundem-se em “Caminhos da Violência”. Macaba
mesclou os momentos que viveu na guerra e conferiu um toque de ficção para dar
outro sabor à sua primeira obra.
Zeca, o personagem
elementar do romance, é o epicentro de toda essa fusão. Podemos dizer que Zeca
é a personificação da passagem de Macaba na guerra. O seu trajecto é similar a
do autor, exceptuando alguns aspectos, como o facto de Zeca continuar na guerra
até ao seu fim.
“Zeca é a encarnação do
sofrimento da guerra. Do teatro macabro da guerra. É a imagem do sofrimento, da
dor, do caos, da resistência, da sobrevivência. Zeca é o espelho da tristeza:
um milhão de moçambicanos mortos e milhões de moçambicanos deslocados”, anota o
escritor.
Como um repórter de
guerra, Macaba, através de Zeca, imerge no cenário de guerra e narra os factos:
“Inicialmente pensei em contar a estória na primeira pessoa, mas com o passar
do tempo optei por narrar na terceira pessoa, pois possibilita maior abrangência”.
Em termos práticos, possibilita manipular as personagens a seu bel-prazer.
Na obra, o autor
investiu nos diálogos. O romance é cheio de conversas. Os diálogos dão outra
dinâmica à estória.
Na guerra, o amor não
tem espaço mas, em “Caminhos da Violência”, Macaba conseguiu arranjar um: “O
amor dá musicalidade e melodia ao romance. É o tempero necessário para uma bela
estória”.
O autor desta obra
conhece a gramática da guerra, todos os vocábulos e regras que a compõem. No
seu percurso, neste acontecimento histórico, Macaba participou num número
considerável de operações.
Mas uma operação não sai
da sua cabeça e, para eternizá-la, transportou-a para o livro: A “Operação
Quinquagésimo Aniversário”.Foi algo marcante. Esta operação tinha como
finalidade vencer a guerra e oferecer esta vitória ao então Presidente Samora
Machel, pelo seu quinquagésimo aniversário natalício. Nesta operação, várias
bases do adversário caíram”. Mas a intenção não foi alcançada. E a guerra
continuou.
Sem ideologias
A Guerra é uma chacina.
Indivíduos matam-se e usam a ideologia como desculpa. Irmãos derramam sangue
por causa das suas diferenças e, no fim, percebem que o sangue que jorra dos
seus corpos é igual.
“Na guerra, o vencedor é
o perdedor. Os intervenientes perdem com a guerra: vários dos seus soldados
morrem. O povo perde com a guerra, escolas são destruídas, hospitais são
destruídos, infra-estruturas são destruídas. Enfim, o país perdeu com a guerra
civil”, sublinha.
Em Macaba, o lado humano
sobrepõe-se ao ideológico. Não é a ideologia que vinga, mas a dignidade do ser
humano”, sintetiza o escritor Suleiman Cassamo, no prefácio da obra. Em
“Caminhos da Violência”, Augusto Macaba distancia-se da parte ideológica e
foca-se no drama vivenciado pelos intervenientes na guerra. “Procurei não
trazer a ideologia das partes envolvidas na guerra: o Governo e a Renamo.”
Guerra contra guerra
O Livro é um desabafo.
Nele, Macaba expressa o seu sentimento de repulsa à guerra, através da voz das
personagens e dos comentários leves do narrador.
A ideia do autor é
recordar aos mais velhos o que foi a guerra, mostrar às novas gerações a guerra
crua e dura como é. “Espero que assim não voltemos a repetir os mesmos erros.
Dá-me calafrios pensar no retorno à guerra”, comenta.
O que leva à violência?
Macaba aponta três sentimentos: ódio, revolta e espírito de vingança. “Mas,
para entender a manifestação da violência, temos de perceber em que contexto
ela surge, quais as motivações que levam os homens ao ódio e à revolta. O meio
social em que os homens vivem, a sociedade é a culpada”, sublinha.
Na visão do autor, é
preciso conhecer as motivações do comportamento desviante para poder-se
modificá-lo. “De pequeno se torce o pepino. Temos de conhecer os caminhos que
levam à violência para combatê-la”, refere.
O romancista não tem
dúvidas de que a guerra é a manifestação máxima da violência. “A guerra surge
pelos três sentimentos, ódio, revolta e vingança, e por algumas ambições
pessoais (políticas e económicas) ”.
Quanto aos vestígios de
certa instabilidade político-militar que se vivem em Moçambique, Macaba, como a
maioria dos moçambicanos, apela ao diálogo. “Através da conversa podemos
resolver as diferenças”, apela.
O livro da vida de
Macaba
Em 1978, três amigos
prometeram escrever uma obra. Dois fizeram juras da boca para fora, mas Macaba
levou aquela promessa consigo. Até no calor da guerra guardou aquele juramento.
Depois da experiência macabra que passou na frente de combate, decidiu
escrever. Fez alguns rabiscos incipientes e logo percebeu que faltava algo:
tinha de ter métodos, ferramentas para redigir.
Como a maioria, iniciou
na leitura, com as clássicas bandas desenhadas. Depois experimentou outros
voos.
“Lia muito. Aprendi muito.
Conheci autores como Herold Robbins, Hans Helmut Kirst, Leon Uris, Frederick
Foreshity, Irving Wallace. Alguns dos livros retratavam a guerra. A Primeira e
a Segunda Guerra Mundial. Em Moçambique li autores como Luís Bernardo Honwana,
Mia Couto, Ungulani Ba Ka Khosa, Aldino Muianga, entre outros.” Com a leitura
ganhou a experiência necessária para escrever com firmeza.
No entanto, o trabalho
foi um obstáculo para a escrita. “Trabalhava em turnos, não tinha tempo para
repousar e escrever. Existia um dia de folga, que reservava para a família e
para o lazer. Nas férias poderia ter apenas 30 minutos para escrever”.
Macaba conta que para
ter mais tempo para a escrita ensinou a sua filha mais nova a omitir mas, como
crianças são crianças, passou por um embaraço. “Quando ficava a escrever não
queria incómodo. Pedia que a minha esposa escondesse aos meus amigos que estava
em casa. Um dia, um amigo veio e ela seguiu as recomendações, disse que não
estava, minha filha mais velha, que ainda era criança, desmentiu-a: papa está,
mamã está a mentir”. Sem argumentos, Macaba teve de sair e atender o amigo.
Estava complicado
escrever. “Existiam dias em que não saía nenhuma página. Noutros saíam dois
parágrafos”.
Apesar das dificuldades,
Macaba tinha a certeza de que o livro sairia, até já tinha o título. “Foi uma
das primeiras coisas a fazer. Escrevia de forma leve, com calma, via e revia os
textos à procura do toque certo: a qualidade.”
Rigor. “Tenho de ser
exigente comigo próprio, tenho de ter a certeza de que o que escrevo me
comoveu, pois o público é exigente.
Os vários manuscritos,
cadernos, folhas dispersas provam o trabalho executado. Em alguns dos cadernos
existem páginas recortadas e alguns borrões. Apesar do esforço, Macaba
precisava de tempo para concluir a estória.
Estabilidade
profissional
Depois de sair da
guerra, Macaba já havia perdido motivação para estudar. Mas, por incentivo de
amigos, voltou a pegar na caneta que havia trocado por uma AK-47. Fez uma
formação na Escola Aeronáutica e ingressou nos Aeroportos de Moçambique como
operacional. Em 2000 concorreu e ingressou na Unidade de Formação e
Investigação em Ciências Sociais (UFICS). Fez o bacharelato em Ciência Política
e licenciou-se em Administração Pública, em 2006. Actualmente é técnico
superior de Comunicação e Imagem na Direcção de Marketing na Sede dos
Aeroportos de Moçambique.
Mas o que isso tem a ver
com a vida literária de Macaba? Tempo, quando muda de cargo ganha mais tempo
para a escrita. Termina a obra em 2010 e procura os mecanismos para a publicação
da obra.
O lançamento
A obra, de 311 páginas, foi
lançada no início do mês de Novembro.
A luta para a publicação
do livro durou cinco anos. A primeira batalha foi a aceitação da obra por parte
da editora. “Mostrei o livro à Ndjira; eles apreciaram durante um ano.
Disseram: “Nós não costumamos lançar a primeira obra de um novo autor,
desconhecido, na categoria romance (género sublime, mais elevado da
literatura). Mas pela qualidade da obra aceitaram o desafio”.
Mas ainda faltavam duas
etapas. “Tinha de arranjar patrocínio e um prefaciador (padrinho). Consegui o
patrocínio e Suleiman Cassamo leu a obra e fez o prefácio de que tanto
gosto”.
Augusto Macaba não
desistiu, pois sabia que era capaz. “Fui persistente, venci as adversidades
para a realização do meu sonho”, lembra.
Agora, Macaba respira de
alívio, olha para a sua obra sorridente na estante da sala. “Espero
ansiosamente pela reacção dos leitores. Amigos e conhecidos mostraram o seu
parecer satisfatório e espero ouvir mais reacções.”
Demorou mais de 20 anos
para lançar a primeira obra, mas adianta que a próxima levará menos tempo. “Já
conheço os mecanismos, agora estou a pensar numa nova obra. Estou em dúvida se
continuo com a temática da guerra ou escolho outro tema”, promete.
Apesar das dúvidas, uma
certeza existe: a obra vai sair.
Família
Macaba morra no bairro
Patrice Lumumba, perto do Estádio da Machava. Neste bairro passou a sua infância.
Por estar perto do estádio escuta os gritos das vitórias dos “Mambas” e é
obrigado a ouvir barulho dos golos contra a nossa selecção.
O ano de 1989 é marcante
para Augusto Macaba e dona Lúcia da Graça Mula. Naquele ano celebraram o
lobolo. Macaba não recordava o dia exacto, mas a sua companheira recordou-lhe:
“Foi no dia 30 de Junho que ele me lobolou”.
Por pouco a data ia ser
alterada. “O pai de dona Lúcia da Graça é um amante do blues. Nesse dia, Eric
Clapton tocava no Estádio da Machava e ele queria estar lá, mas já não havia
como alterar a data”.
O sogro de Macaba teve
de se conformar em escutar o concerto de longe e com interferência dos cânticos
e palmas típicos dos lobolos.
O casal tem três filhos,
duas meninas e um menino. Eles acompanham a obra do pai, leram as páginas do
livro ainda manuscritas e até deram sugestões.
jornal notícias de maputo