sexta-feira, 17 de abril de 2015

Bonecas de capulana


A maneira como uma mulher moçambicana “veste” a capulana esconde significados e códigos sociais, e essa é a grande riqueza cultural que representa em Moçambique.

No catálogo “Festa na Ilha”, para uma das suas exposições, Suzette
Honwana escreveu: “Sempre gostei de ver numa festa ou numa cerimónia uma senhora vestida de mukume ni vemba. É um conjunto clássico do Sul de Moçambique. Consta de duas capulanas cortadas numa mesma peça de pano. A maior, a mukume, com a sua renda branca, vai amarrada à cintura, e a mais pequena, a vemba, traz-se pelos ombros, como um xaile.

Antigamente usava-se amarrada acima dos seios, por sobre amukume, uma outra peça mais pequena, mas do mesmo padrão, a meiopano. Com mukume ni vemba usa-se normalmente uma blusa de corte simples, cor lisa e de mangas cingidas”.
 
As bonecas produzidas por Suzette Honwana têm uma dimensão cultural para além da graciosidade e perfeição nos detalhes das próprias bonecas. Elas representam uma homenagem da sua criadora às mulheres moçambicanas e à cultura de Moçambique, tão bem representada pelo vestuário centrado na capulana, nas suas variantes do Norte ao Sul.

Suzette, oriunda do Sul, mas fascinada pelas mulheres envoltas nas suas capulanas, foi à procura delas pelo país fora e descobriu a riqueza e diversidade das diferentes regiões no modo de vestir, acabando por criar a sua própria galeria de traje. Ela não reproduz apenas mulheres estaticamente vestidas enfeitadas com capulanas, missangas e rendas. Através da base flexível que representa “o corpo” em que o vestuário se apoia, Suzette dá-lhes a expressão que as torna tão vivas. São velhas e jovens, com o bebé às costas ou ao colo, a dançar ou a conversar em grupo. São curandeiras sentadas consultando instrumentos de adivinhação. São até homens, dançarinos de Mapico artisticamente retratados nos bonecos que ela molda e veste.

Indo às origens do significado social da capulana, a historiadora Benigna Zimba escreveu para o catálogo da exposição das bonecas Tiassú: “Em áreas como Zavala (Inhambane), Mecúfi (Cabo Delgado) e Memba (Nampula), o uso do tecido importado associava-se a marcantes distinções sociais entre as mulheres. Enquanto que em Zavala a mulher que usava capulana distinguia-se daquela que usava chivenhula, em Mecúfi e Memba a mulher que usava capulana diferenciava-se daquela que usava nakoto. Embora usando técnicas diferentes de manufactura, chivenhula e nakoto são peças de vestuário feitas à base de casca de troncos de árvore”.

A GÉNESE DAS TIASSÚ

Suzette Honwana sempre gostou de trabalhar com as mãos e ao sabor da inspiração momentânea. E, a certa altura, inspirando-se nas mulheres suas conterrâneas e no uso da típica capulana, pensou em fazer uma boneca.

Em vez de deitar fora o tubo que vem com a linha de croché, aplicou-lhe uma cabecinha e vestiu-o com pequenos retalhos de tecido, procurando “reproduzir” uma mulher vestida de capulana. O resultado não a satisfez mas foi o ponto de partida para dar asas à imaginação e à sua habilidade.

Usando arame revestido com tecido almofadado, conseguiu uma estrutura flexível que se tornou o suporte para o corpo das bonecas e se revelou fundamental ao permitir diferentes posições e expressões corporais. A fonte de inspiração parece inesgotável. Se, com dez bonecas, parece que já se viram todas as variedades de capulanas de todas províncias do país, Suzette descobre sempre mais uma como se as figurinhas brotassem em torrente da sua imaginação.
Passei a observar as mulheres e a capulana de outra maneira,
a tentar captar o essencial para o reproduzir nas bonecas”, diz ela.
Alguns homens que usam capulana, como os dançarinos de Mapico, a curandeira sentada em plena acção, mulheres ataviadas com colares, outras com bebé às costas, velhas apoiadas no cajado e transportando a sua trouxa, com lenço ou com penteados habilmente sugeridos, e até figuras históricas, como as esposas de Gungunhana reproduzidas a partir de gravuras antigas, são uma galeria de símbolos sociais, de história e sobretudo de um mundo particular que as mulheres construíram para si e para o seu lugar na sociedade”.

Quando Suzette se viu perante tantos personagens, compreendeu que tinha representado uma parte essencial da cultura moçambicana e reproduzido a imagem que fica na memória de quem visita o nosso país. E lembrou-se de que, ao contrário do que sucede nos países que conhece, em Moçambique nunca se tinham feito bonecos e bonecas simbolizando costumes e vestuário tradicionais. As suas figurinhas podiam tornar-se ícones do país e, ao mesmo tempo, uma homenagem feminina à sua cultura nacional.

Ela considera que Moçambique terá também de ter um Museu da Capulana porque é importante reconhecer e preservar aquilo que as moçambicanas construíram à volta deste rectângulo de tecido: um código social que a torna uma peça fundamental para o conhecimento antropológico, histórico e sociológico do país.

Os moçambicanos da cidade, já longe do passado rural e tradicional, descobrem em cada boneca memórias da sua infância, as mulheres da sua família e do que elas falam. E revêem a paisagem humana familiar nestas figuras que, de tão expressivas, até parece que as vemos em movimento, rindo e conversando pelas estradas de terra a caminho da machamba, ou dançando em ocasiões especiais, ou simplesmente caminhando pelas ruas das vilas e cidades, ora exibindo ora parecendo esconder a sua graça e poder de sedução.

O FASCÍNIO DA CAPULANA SOBRE ESTRANGEIROS

Em geral os turistas, mas também mulheres e homens estrangeiros que aqui vivem temporariamente, mostram grande interesse e curiosidade pela capulana. É frequente ver mulheres europeias nas lojas dos indianos e nos mercados rurais deixarem-se seduzir por um desses rectângulos de pano de cores sombrias ou muito vivas.

É uma atracção irresistível, mesmo quando não tem para elas uma utilidade imediata. A capulana começa entretanto a atrair modistas amadoras e estilistas profissionais que a experimentam como material de base para suas criações de renovação e adaptação do seu próprio vestuário à “moda moçambicana”.

As bonecas de Suzette privilegiam o modo tradicional de vestir das mulheres de Moçambique, com as suas variações de Norte a Sul e algumas incursões no universo masculino ou moderno e fixando um vestuário que tem lugar num futuro Museu do Traje.


A sua comercialização está a dar os primeiros passos porque a sua criadora só tinha feito experiências até criar a marca Tiassú para organizar uma exposição. A aceitação que recebeu convenceram-na a comercializá-las e aceitar encomendas em locais de exposição como a Galeria da “Kulunguana-Associação para o Desenvolvimento Cultural”, na Estação dos Caminhos-de-Ferro de Moçambique.

Índico (revista de bordo da LAM)

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