Numa narrativa que
prende desde as primeiras páginas, Paulina Chiziane cruza os seus próprios
cenários com um fundo histórico palpável e localizável, numa prosa exuberante e
rica em descrições dinâmicas. Em Moçambique, uma família urbana de classe média
alta leva-nos a percorrer caminhos reais e imaginários com a ajuda da pena colorida
da autora, que se assume preferencialmente como contadora de histórias. São jornadas
tortuosas em que as aparências, constantemente questionadas, e a ética possível
de uma época de conflito armado, se confrontam com o dia-a-dia das pessoas comuns.
David é o
patriarca, acérrimo defensor da sua prole, a qual, no entanto, não hesitaria em
sacrificar para saldar as suas próprias dívidas espirituais, numa órbita insana
de egocentrismo. Entre diversos juramentos assumidos perante terceiros, diante
de deuses ou da sua própria consciência, qual deles prevalecerá quando o
conflito de interesses e lealdades atingir o seu clímax? Neste mundo paralelo
em que a luz e as trevas disputam os dias e as almas, o profano e o religioso
dialogam cruzando curandeiros (aqui, muito valorizados e submetidos a um treino
rigoroso e prolongado) adivinhos e feiticeiros; são pedaços de histórias entre magia
branca e negra, entre o dia e a noite, numa luta de vida e de morte que deixa
um rasto de destruição à sua passagem. David é pai, marido, gestor, com um
passado político e cívico de luta anticolonial, que, no entanto, não o define
nem o condiciona. Ganancioso e simultaneamente débil, ele levará ao extremo a
sua sede de poder a todos os níveis: mulheres (várias), descendência, subordinados,
correligionários e dinheiro, constituirão os eixos em tornos dos quais
edificará paulatinamente o seu próprio inferno.
A busca obsessiva de
ascensão social, de consolidação financeira e de invulnerabilidade nos negócios
parecem justificar todos os sacrifícios: humanos ou desumanos. O compromisso
com o mal gera e provém de um pacto inviolável: conseguirá David reverter a sua
própria condição de submissão? Não se pode vender a alma e permanecer com ela;
há rituais que produzem seres desapiedados e deserdados de misericórdia – este estranho
patriarca poderia estar à mercê de si mesmo, não fora o cuidado extemporâneo e
improvável do seu núcleo familiar, que o ama ainda, contra todas as
expectativas. Vera é a mulher que personifica a própria perseverança. Ela não desiste de descobrir a
verdade e de tentar reverter a lógica destruidora do marido. É o elemento de
coesão de uma família que sobrevive em cacos e que procura um antídoto para o
mal, uma forma de aniquilar todas as forças negativas que se abatem sobre o lar.
Como leitores acompanhamos Vera nessa luta sem tréguas, pois a autora
transmite-nos a força necessária para empreendermos caminhadas sangrentas mas
redentoras entre pedras, montanhas escarpadas e perigos constantes.
Neste romance
pejado de revelações assustadoras, de pesadelos iniciáticos e premonitórios,
que não larga o leitor nem por um segundo, Paulina Chiziane expõe sem meias
palavras uma forte crítica social, corajosa e atenta. Há nele uma denúncia de
um certo machismo, complacência e hipocrisia social em relação à exploração
sexual e afetiva de mulheres e meninas, algumas delas ainda mais fragilizadas
em consequência da barbárie da guerra. E também uma clara menção à corrupção e
à falta de escrúpulos de alguns dirigentes que se comportam de forma análoga
aos representantes do domínio colonial que outrora combateram (que lembra o Triunfo dos Porcos, de Georges Orwell).
A autora tampouco se coíbe de tecer duras críticas ao que vai mal no mundo dito
globalizado.
Note-se esta
passagem, a qual, embora descontextualizada, ilustra bem a diferença na
perceção dos comportamentos de homens e mulheres: «O crime de Vera é grave
porque as mulheres devem ser especializadas em fidelidade e os homens em
traição[1]».
Por estas linhas
passam também pungentes testemunhos da cumplicidade feminina. As heroínas desta
obra, maternais e lutadoras, reconhecem-se na dor e no amor, e a expressão da
solidariedade é nelas mais forte do que qualquer rivalidade ou distanciamento
social.
Finalmente, para facilitar
a compreensão de todos os falantes de português a autora incluiu um glossário
com termos recorrentes e essenciais para a plena compreensão do texto, o que
constitui um importante acessório de leitura, uma vez que nesta obra se dá a
conhecer ao leitor não moçambicano a mundivisão tradicional espelhada nas
crenças nos espíritos e nas formas de culto, o que acarreta forçosamente um
vocabulário local muito específico.
Deixemo-nos, pois, conduzir através destas portas do inferno ou janelas do paraíso, consoante o ângulo e a matéria de que é feito cada um de nós; a pluma sábia de Paulina Chiziane oferece-nos este retrato de uma África, que é, afinal, um imenso vitral multicor e um fascinante caldo de culturas.
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