terça-feira, 8 de setembro de 2015

«O Sétimo Juramento» [ou a magia translúcida das histórias de Paulina Chiziane] - Luísa Fresta


 
Numa narrativa que prende desde as primeiras páginas, Paulina Chiziane cruza os seus próprios cenários com um fundo histórico palpável e localizável, numa prosa exuberante e rica em descrições dinâmicas. Em Moçambique, uma família urbana de classe média alta leva-nos a percorrer caminhos reais e imaginários com a ajuda da pena colorida da autora, que se assume preferencialmente como contadora de histórias. São jornadas tortuosas em que as aparências, constantemente questionadas, e a ética possível de uma época de conflito armado, se confrontam com o dia-a-dia das pessoas comuns.

David é o patriarca, acérrimo defensor da sua prole, a qual, no entanto, não hesitaria em sacrificar para saldar as suas próprias dívidas espirituais, numa órbita insana de egocentrismo. Entre diversos juramentos assumidos perante terceiros, diante de deuses ou da sua própria consciência, qual deles prevalecerá quando o conflito de interesses e lealdades atingir o seu clímax? Neste mundo paralelo em que a luz e as trevas disputam os dias e as almas, o profano e o religioso dialogam cruzando curandeiros (aqui, muito valorizados e submetidos a um treino rigoroso e prolongado) adivinhos e feiticeiros; são pedaços de histórias entre magia branca e negra, entre o dia e a noite, numa luta de vida e de morte que deixa um rasto de destruição à sua passagem. David é pai, marido, gestor, com um passado político e cívico de luta anticolonial, que, no entanto, não o define nem o condiciona. Ganancioso e simultaneamente débil, ele levará ao extremo a sua sede de poder a todos os níveis: mulheres (várias), descendência, subordinados, correligionários e dinheiro, constituirão os eixos em tornos dos quais edificará paulatinamente o seu próprio inferno.
A busca obsessiva de ascensão social, de consolidação financeira e de invulnerabilidade nos negócios parecem justificar todos os sacrifícios: humanos ou desumanos. O compromisso com o mal gera e provém de um pacto inviolável: conseguirá David reverter a sua própria condição de submissão? Não se pode vender a alma e permanecer com ela; há rituais que produzem seres desapiedados e deserdados de misericórdia – este estranho patriarca poderia estar à mercê de si mesmo, não fora o cuidado extemporâneo e improvável do seu núcleo familiar, que o ama ainda, contra todas as expectativas. Vera é a mulher que personifica a própria perseverança. Ela não desiste de descobrir a verdade e de tentar reverter a lógica destruidora do marido. É o elemento de coesão de uma família que sobrevive em cacos e que procura um antídoto para o mal, uma forma de aniquilar todas as forças negativas que se abatem sobre o lar. Como leitores acompanhamos Vera nessa luta sem tréguas, pois a autora transmite-nos a força necessária para empreendermos caminhadas sangrentas mas redentoras entre pedras, montanhas escarpadas e perigos constantes.

Neste romance pejado de revelações assustadoras, de pesadelos iniciáticos e premonitórios, que não larga o leitor nem por um segundo, Paulina Chiziane expõe sem meias palavras uma forte crítica social, corajosa e atenta. Há nele uma denúncia de um certo machismo, complacência e hipocrisia social em relação à exploração sexual e afetiva de mulheres e meninas, algumas delas ainda mais fragilizadas em consequência da barbárie da guerra. E também uma clara menção à corrupção e à falta de escrúpulos de alguns dirigentes que se comportam de forma análoga aos representantes do domínio colonial que outrora combateram (que lembra o Triunfo dos Porcos, de Georges Orwell). A autora tampouco se coíbe de tecer duras críticas ao que vai mal no mundo dito globalizado.

Note-se esta passagem, a qual, embora descontextualizada, ilustra bem a diferença na perceção dos comportamentos de homens e mulheres: «O crime de Vera é grave porque as mulheres devem ser especializadas em fidelidade e os homens em traição[1]».

Por estas linhas passam também pungentes testemunhos da cumplicidade feminina. As heroínas desta obra, maternais e lutadoras, reconhecem-se na dor e no amor, e a expressão da solidariedade é nelas mais forte do que qualquer rivalidade ou distanciamento social.

Finalmente, para facilitar a compreensão de todos os falantes de português a autora incluiu um glossário com termos recorrentes e essenciais para a plena compreensão do texto, o que constitui um importante acessório de leitura, uma vez que nesta obra se dá a conhecer ao leitor não moçambicano a mundivisão tradicional espelhada nas crenças nos espíritos e nas formas de culto, o que acarreta forçosamente um vocabulário local muito específico.

Deixemo-nos, pois, conduzir através destas portas do inferno ou janelas do paraíso, consoante o ângulo e a matéria de que é feito cada um de nós; a pluma sábia de Paulina Chiziane oferece-nos este retrato de uma África, que é, afinal, um imenso vitral multicor e um fascinante caldo de culturas.


[1] Chiziane, O Sétimo Juramento (3ª Edição), 2008, p. 246

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