Por Jomo Fortunato
Poeta e contista, João Tala mudou o panorama literário angolano com a
publicação de “A forma dos desejos”, livro que inaugurou uma forma inusitada de
construção poética, em que a memória da palavra, mesmo fora do verso,
potencia múltiplos universos de significação, estimulando infinitamente o
imaginário, e as experiências íntimas do leitor.
As palavras do poeta sobre o
“leitmotiv”, ou seja, o fio condutor da sua escrita, dão pistas importantes
para a compreensão do seu processo criativo: “Reflicto a emanação de processos
que dotam a palavra de uma existência própria, através de vias abertas, a
partir de pulsões do inconsciente. Tais pulsões resultam de várias vivências
humanas, com valor na história e nas emoções, no amor e ódio”.
“No domínio dos sentidos vão conformar a própria subjectividade, dotando a palavra
de uma carga simbólica, stressante mesmo, por causa das exposições
sócio-profissionais em actividades que dão motivação existencialista: fui
soldado enfermeiro, tendo servido nos espaços e cenários de guerra, formei-me
em medicina, percorri com alguma profundidade o interior da Lunda-Norte como
médico militar, levando assistência e meios médicos não só às tropas, mas,
igualmente, às populações afectadas, factos que me foram marcantes, e se
destacam ainda em muitos dos meus conteúdos”.
“São estes os meus antecedentes, sobre os quais acrescento as minhas leituras e
o exercício permanente no sistema de criação e realização estética. Estes são,
contudo, alguns pormenores de entre vários momentos de referência no
processo da minha forja literária”.
Embora a imanência e a estética do texto resguardem, pela força ficcional da
metáfora, a problematização das conflitualidades sociais e políticas, a poesia
de João Tala não deixa de destapar o véu das suas características
interventivas: ainda apagam pálpebras de volta à tontura/ainda o sentimento da
nossa longa história/a ruína vai da notícia à revolução/palavras mortas nunca
mais preenchidas/ os rios demorados no sintoma dos países/ e tudo passa e o
poema indaga/o dia que acontece como uma ruína. Lemos em “Tontura”, poema do
livro “Rua da insónia, um manifesto de inquietações”.
Filho de Tala Sebastião Joaquim e de Bernarda Simão António, João Tala
Sebastião Joaquim nasceu em Malanje no dia 19 de Dezembro de 1959. Médico
de profissão, na especialidade de medicina interna, e membro da União dos
Escritores Angolanos, João Tala iniciou a actividade literária no Huambo, onde
cumpria o serviço militar, tendo sido, ainda na mesma cidade, co-fundador da
Brigada Jovem de Literatura, Alda Lara, em 1980.
Versificação
No poema “Colheitas uterinas” do livro “A forma dos desejos”, João Tala
anunciava a sua estratégia de versificação, distanciando-se da significação
directa, aproximando-se mais da sugestação cinematográfica de imagens: Da
paisagem testemunhei a prova de fogo/o silêncio material e a riqueza
metafísica/na tua lavra, irmã, há colheitas uterinas:/uma nova viagem para que
nos regressemos nós mesmo na indiferença./Liberdade sem medo, conta os dedos
da/ tua mão procriada, conta P’ra nação/nosso machado secreto canta pela raíz./
- tens essa noção de fogo em tua tabuada.
Medicina
O exercício da medicina vem influenciando momentos importantes da criação
poética de João Tala, visíveis em determinados títulos dos seus poemas.
Seleccionamos, de forma arbitrária, uma sequência de títulos, com os quais
podemos inferir diferentes fases da existência humana: “Colheitas uterinas”,
pode simbolizar o nascimento, “Tontura”, existência atribulada,
“Psiquiatria I e II”, a possível ou impossível terapia da loucura, “Obituário”,
a morte definitiva, e “Me reconstruindo”, a liberdade, reconstrução ou a ideia
cristã de ressurreição celestial.
Temas
Influenciado pelas vivências em cenários de guerra, os percalços da existência
humana no tempo, constituem temas recorrentes na poesia de João
Tala. Vejamos o poema “Psiquiatria II”, do livro “Rua da Insónia, um manifesto
de inquietações”: Todos me acham que sofro de miséria/ faço de cada
história um reboliço./ Mas devagar essa cicatriz banal eu escrevo;/ esse ardil
de loucos é um poemário;/ um documento daquelas minhas dores./
Tudo vai
mal, dizem. Tudo vai ! /Vai a raiva tão simples como fazer perguntas;/ vai de
passada qualquer maluco palpitando/ [muita gente/ e vão outros palpitando
os relógios/ [automáticos:/...tic-tac tic-tac tic-tac.../ Os tique-taques
nascem das nossas bocas/ Bocas dissolvidas. Noites volémicas./ Os
sentidos moídos na rua dos atritos.
A morte por miséria, e questões muito actuais como a “coisificação” da vida
humana, são temas lavrados no poema, “Obituário”, do mesmo livro: “Onde ouvidos
repetem pequenas ruínas/ sobra o revólver sobre dias túmidos/ para decretar
morte é como ninguém/ para aumentar áfricas laboratoriais e/ o
latifúndio//depois dá um tiro na cabeça da história/ tal como tropeça no meu
palavrão/ sem nada para acrescentar à morte/ sem nada para contar à vida/ sem
ser nunca o nome da multidão.
Livros
Indiciando uma clara consistência produtiva, sobretudo ao nível da criação
poética, João Tala publicou: “A forma dos desejos” (poesia, 1997, UEA),
“Gasto da semente” (poesia, 2000, INALD), “A forma dos desejos II” (poesia,
2003, UEA), “Lugar assim” (poesia, 2004, UEA), “Os dias e os tumultos”(2004,
contos, UEA), “A vitória é uma ilusão de filósofos e de loucos” (poesia,2005,
UEA), “Surreambulando” (contos, 2007, UEA), “Forno feminino”, (poesia, 2010,
Kilombelombe), “Rosas & munhungo”(contos, 2009, UEA), “Rua da insónia, um
manifesto de inquietações” (poesia, 2013, UEA).
Distinções
Um dos poetas mais importantes da poesia contemporânea, João Tala foi
distinguido com o prémio Primeiro Livro pela União dos Escritores Angolanos, e
primeiro lugar dos Jogos Florais do Caxinde, em 1999, com a obra poética “A
forma dos desejos”, Menção Honrosa do Prémio Literário Sagrada Esperança,
edição 2000, com o livro “O gasto da semente”, Grande Prémio de Ficção, edição
2004, pela União dos Escritores Angolanos, com o livro de contos, “Os dias e os
tumultos”, e Grande Prémio de Poesia, em 2005, com o livro, “A vitória é
uma ilusão de filósofos e de loucos”, pela União dos Escritores Angolanos.
Jornal de Angola