quinta-feira, 5 de março de 2015

O Tocador de Kora

  
Luísa Fresta


O Museu Nacional do Teatro, no Paço do Lumiar, em Lisboa, foi palco de um mini-concerto memorável protagonizado pelo virtuoso José Braim Galissá, oriundo de uma família de «djidjius» da Guiné Bissau (músicos que perpetuam as tradições, cantando-as e contando-as de geração em geração, equivalentes aos griots), contador de histórias, intérprete e tocador de kora, e herdeiro deste património cultural ancestral – a kora do seu avô, encontra-se, aliás catalogada no Museu de Etnologia de Lisboa.


No âmbito das Jornadas Europeias do Património de 2014, foi também exibido o primeiro filme documental da autoria do realizador Jorge de Carvalho, intitulado «Kora», rodado na Guiné-Bissau, e através dele ficámos a saber um pouco mais sobre este mítico instrumento, que produz um som inimitável e fascinante. O documentário foi financiado com fundos próprios e beneficiou de algum apoio técnico graças à solidariedade dos amigos; e, como muitas vezes acontece, vai-se tornando progressivamente num testemunho cultural de interesse público, louvado pela crítica e pela assistência.

O dia 28 de Setembro de 2014 foi um dia de fortes aguaceiros em Lisboa, mas este fantástico instrumento de cordas justificou cada gota de chuva que me caiu em cima, cada poça de água que não pude evitar e o aspecto pouco recomendável com que por fim me apresentei no Museu do Teatro para testemunhar e participar daquele belíssimo momento de aprendizagem e entretenimento. Se a água purifica, em sentido estrito e simbolicamente, talvez tenha sido também um ritual imprescindível para que me sentisse à altura de interiorizar a voz e a história da kora, contada pelo mestre guineense e pelo investigador português.

Mestre Galissá afigurou-se-me desde logo como uma pessoa de simplicidade tocante, acessível e discreto. Antes e depois da exibição do filme seguida do concerto, trocou impressões com os presentes, disponível e sereno, esclarecendo todas as dúvidas, não desencorajando nenhuma manifestação de interesse em torno da sua aura pessoal e do seu trabalho.

A kora soa como um nome de mulher e a sua voz é uma voz eminentemente feminina. Ignoro por que razão tal instrumento me recorda o poema Mon Rêve Familier, de Verlaine…
 «(…) Son regard est pareil au regard des statues/
Et, pour sa voix, lointaine, et calme, et grave/
elle a l’inflexion des voix chères qui se sont tues.(…)»[1]
…mas a associação parece-me directa e imediata.


As luzes apagaram-se lentamente no pequeno auditório de cadeiras de veludo, e inventei tempo para alguns momentos de recolhimento antes de cair em cheio no documentário: conheço o instrumento através de composições dos incontornáveis Toumani Diabaté ou Ballaké Sissoko, ambos do Mali, do senegalês Idrissa Diébaté, e de músicos da Gâmbia. Se fechar os olhos consigo também imaginar contadores de histórias percorrendo palcos um pouco por todo o mundo enquanto tocadores de kora extraem algumas notas daqueles magníficos teares de sons, que servem de pano de fundo às narrativas.

Sempre a associei por isso a outros países da África Ocidental, alguns dos quais reclamam também a sua origem, para além da Guiné Bissau. Porém, essas questões parecem-me agora algo desprovidas de sentido, face a outras que me estimulam verdadeiramente: importa-me saber de onde vem a kora, mas sobretudo para onde vai. Kora, que futuro? 

Numa época em que a utilidade das coisas se sobrepõe ao seu valor intrínseco e estético, fará sentido tocar um instrumento tradicionalmente usado para exaltar os grandes feitos dos reis, dos imperadores, dos líderes militares, de valorosos guerreiros?

Pelos esclarecimentos do cineasta, fica-nos a impressão de que a kora terá sempre assegurada a vertente musical; e curiosamente já existem hoje em dia inúmeros seguidores no Ocidente, que se deslocam para os países onde se toca a kora, para aprender a tocá-la, em cursos com uma procura crescente. Mestre Galissá também ensina a kora a dezenas de alunos em Lisboa, mas para tocá-la como ele, é preciso alma, entrega e uma força que lhe vem da ancestralidade e da missão da linhagem de que provem. Será o Homem que escolhe a kora ou o inverso?

A kora não me parece susceptível de se tornar propriedade de alguém - talvez seja mais o contrário - os homens são possuídos por ela, submetendo-se aos seus caprichos através de gerações intermináveis de admiradores, executantes e ouvintes. Existe uma enorme sacralização do instrumento: não é tocado por mulheres, que se limitam ao metalofone e aos cânticos. Tal pormenor leva-me a imaginar que a kora é em si mesma uma mulher, um ideal feminino só tocado por mãos masculinas, e não quaisquer mãos, mas apenas as dos iniciados. São mãos de dedos finos e alongados que a tocam com um profundo respeito e amor. 

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Reza a lenda que a primeira kora pertencia a uma mulher-génio que vivia nas grutas e que lhe teria sido roubada por um grande chefe guerreiro, deslumbrado pela sua música. E a partir de então a kora teria sido passada de pais para filhos. Quem sabe se esse mulher-génio espoliada não se confunde hoje em dia com a própria kora?

Mestre Galissá interpretou diversos temas de uma grande suavidade, alguns dos quais em português e outro dedicado às mulheres, o que criou de imediato uma enorme empatia com a assistência feminina. A sua kora é modernizada, para garantir uma afinação rápida, porém mantendo o som que a caracteriza; trata-se tão só de uma adaptação às exigências da vida moderna, que facilita igualmente a afinação: tripas de boi substituídas por fios de nylon, mantendo uma única tripa para se não perder a origem do protótipo original, cordas presas ao cabo por chaves mecânicas como numa guitarra, em vez dos tradicionais anéis em pele de vaca, microfone no interior.

De resto trata-se de uma harpa artesanal de 21 cordas (por vezes 22 ou 28, nomeadamente no Senegal), também chamada harpa-alaúde, tendo como base uma cabaça coberta com pele de boi e um fino e longo cabo de madeira. À luz da informação actual, terá surgido pela primeira vez no império Mandinga de Gabú.

Alguns bebés presentes na sala, em plena crise de choro no início do concerto, acalmaram-se como por magia com os primeiros acordes da música. Poder da kora, poder do artista, poder da música, simplesmente.

«Povo que canta os seus antepassados não morrerá», como é referido no genérico do filme, foi a frase que ficou na memória quando, contrafeitos, tivemos que abandonar aquele local apaziguador, conduzidos pelo sorriso tranquilo de Mestre Galissá. Até a chuva serenou quando deixámos o Museu, ouvindo ainda as palavras deste espantoso intérprete: «O nosso tempo é sempre o melhor tempo».
Tenciono por isso aproveitá-lo o melhor possível, deixando-me embalar pelo som da kora enquanto escrevo.

Para mais informações sobre a kora, Mestre Galissá ou o filme, consultar também:

[1] O seu olhar parece o olhar das estátuas/ E quanto à voz, longínqua, e calma, e grave/ tem a inflexão das vozes queridas que o tempo calou.

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