quinta-feira, 26 de fevereiro de 2015

A escrita identitária de Paulina Chiziane



José dos Remédios, jornal moçambicano O País.
"Uns dominarão com violência, outros gemerão sujeitos aos seus caprichos" . Rousseau
Paulina Chiziane é daquelas autoras moçambicanas que insiste em preservar,no universo ficcional que cria, os traços fundamentais da sua escrita. Ao lê-la, não fica à margem a ideia de que a escritora é fiel a si própria e às suas convicções que a permitem partilhar preocupações, incómodos e devaneios,enquanto entidade empírica.
De “A Balada de amor ao vento”, atravessando “Niketche”, “O sétimo juramento” ou mesmo “As andorinhas”, Chiziane não consegue estar alheia à morte, à traição, à miséria, à guerra, à disputa pelo poder, à vitimização das mulheres e/ou à covardia dos homens, aspectos que, na sua essência, culminam ou tocam nos problemas ligados à busca pelos valores identitários centrados na tradição.
Assim, “Ventos do apocalipse”, uma história que nos traz os melodramas dos moradores de Mananga e Macuácua num contexto de guerra, é uma espécie de reflexo do que a miséria tem feito no seio de uma sociedade com várias crises, desde as culturais às políticas, consequências dos choques nefastos resultantes dos complexos interesses do Homem. Essas crises revelam a vulnerabilidade da identidade africana que, através dos seus povos, deixa-se vergar por tudo o que é importado. Há nesta obra a sugestão explícita de que enquanto não houver o equilíbrio entre a tradição e a modernidade, as catástrofes sociais em África não irão cessar, pois do desequilíbrio surge o descontentamento dos antepassados que não reconhecem o modus vivendi das actuais gerações.
Trazendo esse conflito, entre o velho e o novo, “Ventos do apocalipse” mostra, simultaneamente, os caminhos escolhidos por aqueles que atropelam a matriz cultural africana a favor e ao serviço de um deus branco acima de qualquer suspeita, no entanto, incompetente a resolver os problemas que afligem as personagens que, a certa altura, caminham sem rumo. Além disso, este livro é a representação de quão ténues são as relações sociais frutos da modernidade que sufoca a tradição e as vantagens que daí advêm.
Entre a magia, a mentira, a prepotência, o oportunismo e o desespero, nesta obra de Chiziane os ventos do apocalipse, que só deixam de ser isso mesmo nos poucos momentos em que a esperança brota, funcionam como demonstração do poder dos finados, mas também traduz as fragilidades dos novos contratos sociais. Afinal, como diz uma certa entidade do livro, “no tempo da fome, a única lei (que serve) é a da sobrevivência” (p. 181), a que faz com que uns dominem com violência e outros gemam sujeitos aos seus caprichos, como sugere Rousseau.

Em último plano, em algum momento, ao buscar na realidade histórias verosímeis, a autora de “Por quem vibram os tambores do além?” parece buscar na mão de Deus o que necessita para devolver a essa mesma realidade uma razão de existência, como é óbvio, sem que a arte literária se converta num instrumento meramente utilitário.

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