quarta-feira, 21 de janeiro de 2015

Os Mucubais - a atracção de turistas


 Elias Tumba, ANGOP

A história do povo Cuvale (Mucubal), um sub-grupo étnico da etnia Herero "treinado" pelo deserto, tem tudo para constituir fonte de inspiração a antropólogos e realizadores da sétima arte

 
Rodar um filme com esta matriz tradicional seria por si só fascinante para os profissionais de Hollywood, com os seus super efeitos, mas algo chamaria atenção, se no centro da trama estivesse este povo de mistérios. 

 Hereros, particularmente da comunidade Cuvale, habitam preferencialmente a zona Sudoeste de Angola. Mítica e original, a comunidade "desafia" o Mundo com uma demonstração de pureza e resistência da civilização africana, sem recurso às mais nobres descobertas da globalização.
 A realidade deste grupo étnico, confinado na província do Namibe, até pode parecer ficção. Porém, um contacto directo, mesmo breve ou à distância, desvenda uma sociedade rara que, como os Nyaneka Nkumbi, mantém hábitos e costumes semi-primitivos, em pleno século XXI.
 Tradicionais guerreiros e pastores de gado, atraem como poucos outros na região turistas de várias partes do mundo, àvidos em conhecer, na essência, as razões dessa eterna e consistente ligação a um passado quase milenar.
 É este subgrupo da etnia Herero, tradicional nas bermas de paisagens inóspitas entre Angola, Namíbia e Botsuana, que a Angop se propõe conhecer, nesta "prospecção" pela província do Namibe, em busca de elementos singulares capazes de potenciar e divulgar o turismo local.
 Juliana Fonseca é administradora do município de Virei. É nesta região do Namibe onde se torna mais intensa e visível a actividade desse subgrupo étnico. São ao todo 40 mil habitantes desta tribo, registados pelo Estado.
 Conhecedora da sua realidade social e cultural, serve-nos de “guia” para entendermos, numa primeira observação, as motivações, os anseios e dificuldades desta comunidade.
 A gestora diz tratar-se de uma comunidade bastante inteligente que, apesar de ter hábitos diferentes, tem sabido dignificar a população da região.
 Sem medo de errar, afirma mesmo que os membros desta comunidade são os mais novos potenciais a ocupar o sistema de ensino escolar, embora se lhe atribuam o estatuto de povo resistente à instrução.
 “É um povo conservador, em termos de cultura, mas muito solidário e acolhedor. Os Cuvales hoje são os potenciais candidatos ao sistema de ensino, desde crianças a adultos, que aderem à alfabetização”.
 A administradora faz questão de desfazer o mito de que se trata de um povo sem instrução e, que ainda, assim, resiste à inserção no sistema de ensino.
 “Acho que a confusão deve-se a este nomadismo, que as pessoas confundiam com a resistência. O grande constrangimento é que, sendo potencialmente criadores, por força das circunstâncias, movimentam-se constantemente em busca de condições de pasto para os seus animais. Nisso, levam as suas crianças”, explicou.
 Para contrapor essa realidade, o executivo local passou a apostar forte na distribuição de merenda escolar e, como se esperava, os frutos são visíveis e estão a atrair o povo Cuvale à escola convencional.

(Traços somáticos e físicos)

 Os costumes da sua primeira geração podem chegar a assustar e até arrepiar a quem desconheça, na essência, a civilização africana. Os seus hábitos são múltiplos e únicos, embora alguns dos seus descendentes estejam já menos distantes do mundo ocidental e globalizado.
 Aos poucos, o grupo social abre-se ao mundo, abraçando a escola e convivendo com maior facilidade com povos de outras sociedades ou matrizes étnicas, mas um aspecto continua a chamar atenção a quem, como a nossa equipa de reportagem, encontra-os pela primeira vez.
 A etnia Herero, de que provêm os Cuvales (Mucubais), é facilmente identificada pela forma tradicional em que se veste. Diferente dos Nyaneka Nkumbi, um mucubal pode até passar despercebido na sua forma de trajar, para quem desconhece o seu mundo. Todavia, um simples detalhe garante a autenticidade de um membro: os dentes.
 A sua actual geração mantém os mesmos hábito dos seus antepassados, na forma de vestir, comer, reproduzir e proteger o gado. A tradição é realmente exigente e, sem ela, o povo mucubal morre.
 Trata-se de um grupo simples, humilde e trabalhador, detentor de códigos sociais marcantes e típicos da ancestralidade africanas. Alguns hábitos fazem lembrar os Indios, que habitam a América do Sul.
À primeira vista, parece um povo parado no tempo e espaço, mas a sua tradição revela uma sabedoria natural, sendo esta a única forma de explicar a sua “vitória” e facilidade de adaptação ao deserto.
O seu vínculo com a tradição é inquebrantável. Como tal, segue à risca um hábito que, sendo pouco notado, serve de único detalhe para aferir a autenticidade de um membro: a lima dos dentes incisivos inferiores.
Segundo explicações, este processo de extração dos dentes, que era feito apenas com um pau e uma pedra pelas primeiras gerações da comunidade Herero, serve para aferir se alguém é ou não Cuvale de gema.

(Origens e características) 
  
Reza a história, ainda pouco explorada e publicada, que esta comunidade nómada e folclórica descende de povos camitas, bantus, que foram pela primeira vez referenciados em 1785.

 
Segundo estudos do compêndio História de Angola, publicado em 1965, pelo Centro de Estudos Angolanos, o povo Helelo, Herero ou Ovahelelo de que provêm os Cuvale (mukubais) terá saído da região dos Grandes Lagos, por volta do Sec XVI.
 A sua entrada em Angola teria sido feita pelo extremo Leste, atravessando o planalto do Bié, antes de ir fixar-se entre o deserto do Namibe e a Serra da Chela. 
 Como qualquer povo de matriz Herero ou Ovahelelo, são tradicionais pastores/criadores de gado que deambulavam, na era colonial, pelas margens do rio Bero, Giraúl, Vintiaba ou Bentiaba. Praticavam uma vida nómada devido a constante procura por água de que o deserto carece, por falta de chuva.
 Esta comunidade é sem dúvida, à semelhança dos Nyaneka Nkumbi da província da Huíla, uma referência de perseverança e fé. No final da era colonial, esteve em risco de extinção, dado o seu perfil e opções de vida, sobretudo em termos alimentares.
 Dizem os escritos que, apesar do seu potencial em gado, passava fome por falta de cereais suficientes na sua dieta alimentar, dado o tipo de agricultura rudimentar que praticam, quase reduzida a massango e massambala, levada a cabo por mulheres.
 
Mas qual será a realidade actual desta gente fiel aos princípios dos seus ancestrais, que continua a resistir à integração social nas cidades, preterindo a tecnologia ocidental pelo segredo do deserto.
 A vida dos Mucubais tem muitos mais mistérios do que se possa imaginar. Os seus hábitos e costumes são quase pouco estudados por arqueólogos, historiadores e antropólogos de todo Planeta.
 Diferente do que se pensa, conhecem os vícios e as virtudes da civilização modernista e vivem, hoje, entre a aceitação e recusa dos comércio convencional.
 A ida à escola e a aceitação do cristianismo são outros aspectos em que se mostram irredutíveis, para dar continuidade às antigas tradições, pois têm noção que, só assim, resistiriam como povo original.
 Trata-se de um povo inconfundível, que se difere dos povos civilizados com as suas típicas pulseiras, missangas e turbante de pele de carneiro, que são enfeites indispensáveis nas mulheres. Já os homens apresentam diferentes tipos de cabelo, cada um com o seu significado.

(Organização Social)

 O seu modo vivende assemelha-lhe, em muitos casos, ao dos povos semi-primitivos (índios) que habitam o Brasil, na América do Sul. Entretanto, um aspecto particular os difere, a capacidade de pastar e um amor platónico pelo seu maior tesouro: o gado.
 Aqui, os bois são mais do que uma divindade, podendo mesmo, um membro da comunidade, sacrificar a vida se tiver de defender algum membro dessa sagrada espécie, seja de inimigos humanos (caçadores), seja de animais da mais dura linha de ferozes.
 Mas qual será a razão para que os mucubais, ricos em gado e carne, somente em momentos especiais abatem uma cabeça para o consumo, sobrevivendo em muitos casos de frutos silvestres e derivados do leite, numa área tomada por areia.
 A busca por água e comida dependem de um processo de transumância, que os pode levar a percorrer mais de 50 quilómetros por dia, enfrentando de peito aberto e com sabedoria ancestral os qualquer eventual perigo do deserto.
 A comunidade pode parecer ultrapassada no tempo e espaço, mas guarda a mais típica sabedoria africana, sobrevivendo e resistindo por vários séculos à invariável seca.
 Desde o período colonial, opta por uma dieta quase à  base de frutos silvestres, leite e seus derivados. Carne, apenas em ocasiões especiais. Segundo relatos, o povo recusa-se a comer peixe, alimento que o mar, próximo do seu habitat, quase gratuitamente lhes ofereceria.

Ainda segundo os mesmos relatos, essa prática não se deve a factores culturais. Reza uma antiga lenda que os seus antepassados foram mortos, atirados ao mar e comidos pelos peixes, sendo esta a causa do aparente desprezo pelo peixe.
 Os bois, sua maior riqueza, são o centro da organização social dos Cuvales, sendo a fonte de quase tudo que necessitam. Ele serve para fazer de tudo um pouco. Da pele do animal deriva a cama, do leite o alimento, das fezes misturadas ao barro o suporte das casas e da carcaça a homenagem aos mortos.
 Nesta comunidade, quanto maior for o número do gado, mas respeitável será a pessoa proprietária, daí toda a organização social girar em volta desta espécie animal.
 Desde as suas primeiras gerações, o gado tornou-se como moeda de troca e transacção monetária. Era um artigo cobiçado pelos comerciantes estrangeiros, que os recebiam em troca de produtos como milho, fuba e bebidas alcoólicas.

(Habitat e rituais socio-culturais)
 Os Cuvales dependem da chuva para manter e reproduzir o gado. Vivem numa zona onde em cada ano oito meses são secos, com anos de chuva reduzida. Mas mesmo assim conseguiu sempre, pela transumância e pastorícia, alimentar o rebanho, mesmo nos momentos mais críticos.
 Cada Mucubal dispõe de um kimbo (várias cubatas dispostas em círculos, onde o patriarca reúne todas as mulheres e família, vivendo em harmonia e trabalhando no campo. Contraem matrimónio dentro do mesmo grupo, uma vez que não admitem cruzamentos com outros grupos. São poligâmicos.
 A casa é feita de areia, com esterco de boi, complementada por paus que fazem o papel de porta. Apesar do material rudimentar, os espaços são seguros e, segundo relatos, chegam a resistir à chuva, sem qualquer infiltração.

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