Tanto as migrações bantu que ocorreram antes da invasão e ocupação das potências
ocidentais a África como o comércio negreiro e a circulação de pessoas e bens
que tiveram lugar no período colonial por razões que não interessam aqui elencar,
foram o cimento que edificou os laços entre angolanos e moçambicanos, para nos
cingirmos apenas a estes. Os padrões de variação genética observados entre
estes dois povos irmãos revelam níveis elevados de homogeneidade. Na província
de Tete, em Moçambique (caso que me traz aqui), por exemplo, são conhecidos os anyungwe cujos ascendentes tinham vindo
de Angola integrados no contingente do exército português com a incumbência de
“pacificar” o território que então vivia focos de resistência à ocupação
colonial portuguesa. Parte deles acabaria por constituir família e se fixar em
Tete.
Inúmeros são os exemplos resgatados da
Linguística e/ou das línguas dos quais passaremos em revista apenas alguns, que
se supõem sejam aqueles que mais testemunham essa irmandade acima referida. Alguns
desses termos de raiz bantu são
usados tanto em Angola como em Moçambique e também circulam em Portugal, neste
caso, trazidos por imigrantes oriundos daqueles países africanos, sobretudo de
Angola.
Para começar em grande e em beleza, os
primeiros exemplos de termos nyungwes
seleccionados são kuzinga, ‘enxotar;
espantar moscas, pássaros, galinhas, cabras, etc.’, kukazinga, ‘tostar, assar (grão de milho, amendoim)’, e kuzunga, ‘passear; procurar; ir à
caça’. Supõe-se que estes vocábulos tenham
origem na intrépida e não menos bela rainha de Angola, Nzinga (também grafada como Ginga, Jinga, Zingha, Njinga) Mbandi
Ngola. A rainha é conhecida na historiografia africana e ocidental como tendo
lutado diplomática, através de várias negociações com os invasores europeus,
sobretudo portugueses, mas também por via armada, conduzindo exércitos armados,
para expulsar os ocupantes dos seus territórios, tendo granjeado fama e
admiração, mas também ódio e temor junto das hostes inimigas. Devido à sua
beleza, o verbo gingar, ‘pavonear-se,
bambolear-se ao andar’, do português africano (PA), já dicionarizado e,
portanto, atestado até no português europeu (PE), também a ela é-lhe atribuído.
Os verbos em causa evocam o espírito guerreiro manifestado, o terror causado nas
hostes contrárias, as incursões armadas e outras acções realizadas,
respectivamente, e fazem alusão ao seu carácter de audácia, bravura e
inteligência. Este fenómeno não é exclusivo a ela. Não admira, pois, que uma
personagem tão marcante como esta tivesse emprestado o seu nome a campos do
saber como o da Linguística.
Recorde-se expressões como “política
maquiavélica” (de Nicolau Maquiavel), “erro crasso” (de Marco Licínio Crasso),
jacobinismo e outros mais que também surgiram associadas a figuras que uma ou
de outra maneira marcaram a sua sociedade e a sua época.
Ainda referente a Nzinga poderá ser o termo zungueira,
usado em Angola com o sentido de mulher lutadora que vai em busca do seu ganha
pão, percorrendo a cidade e os subúrbios de Luanda a vender produtos vários,
normalmente carregados à cabeça, qual guerreira lutando pela sua sobrevivência.
O nome zungueira derivará do verbo kuzunga, em kimbundu, que significa ‘passear, deambular’. Em nyungwe,
existe o verbo kuzunga com o mesmo
significado do de kimbundu.
O segundo exemplo escolhido nestes trilhos
linguísticos é o bué, ‘muito’, grafado conforme a ortografia portugusa, tão
popularizado entre os angolanos e também entre alguns jovens que falam
português. Se fosse grafado de acordo com as normas bantu, as semelhnças seriam ainda muito mais evidentes. Uma vez
mais, o termo é introduzido em português (incluindo PE) provavelmente a partir
do kimbundu kibwe que dá a ideia de
imensidão. A palavra nyungwe
equivalente e com o mesmo sentido é gwee
ou mbwee. As semelhanças entre estes
termos nyungwes e o kimbundu parecem-me evidentes.
Nesta busca dos possíveis laços de
proximidade latentes e desconhecidos do cidadão comum entre nyungwe e kimbundu, despertou-me interesse linguístico ao ouvir uma amiga minha
angolana de Catete (Katete) dizer a
expressão “kadye matuji”,
literalmente “vai comer merda” no sentido de “vai à merda”. Embora não seja
usual, o equivalente nyungwe desta
expressão kimbundu é kadye matubzwi. O significado é o mesmo e se não fora a falta de
uniformização gráfica das duas línguas bantu,
mesmo nas línguas bantu do mesmo
país, era em tudo semelhante.
É de salientar que o changana usa a expressão famba
ucitinyela, que nada tem a ver com as
duas expressões acima aludidas, apesar de nyungwe
e changana pertencerem ao mesmo país
- Moçambique. O que faz com que o nyungwe
seja mais aparentado com o kimbundu, de
Angola, do que com o changana, de
Moçambique. Reportando-se ao parentesco, equivaleria a dizer que o nyungwe e o kimbundu comportam-se como irmãos entre si, ao passo que nyungwe e changana se compararia a uma relação entre primos. Estas
convergências e divergências caracterizam a diversidade cultural e linguística
que temos, uma das nossas riquezas intangíveis.
Repare-se neste outro exemplo em que as
duas línguas se entrecruzam. Enquanto em kimbundu
(também em shona) imbwa designa cão em geral, kambwa significa cão com algumas
especificidades, que podem variar desde cão dócil a cão raivoso, em nyungwe, para os mesmos contextos, temos
mbwaya, kambwambwa, respectivamente. Este último termo aplica-se em nyungwe com o sentido restrito de cão
raivoso. Chamo a atenção para o aparecimento em nyungwe do conceito kambowa,
que parece ser da mesma família de imbwa.
Curiosamente, o seu significado aparenta ser surpreendente, ‘salteador’. Mas,
se reparmos com cuidado, kambwa (kimbundu), kambowa (nyungwe) não só têm
formas semelhantes como também semântica idêntica.
Depois destas coincidências linguísticas
que acabei de referir, não me passaram indiferentes, os nomes Catete (Angola) e
Tete (Moçambique). Julgo serem por demais evidentes as semelhanças na forma
destes termos. A diferença formal visível entre eles está na presença/ ausência
de ca- (ka-), um elemento que na Linguística Geral se chama prefixo. Em
Linguística bantu, o elemento ka- (morfema, para usar o jargão
técnico) serve como diminutivo que tanto pode denotar simplesmente tamanho
pequeno ou significar carinho ou ainda servir de indicativo de lugar onde
(locativo, termo técnico) como em “ka
Gaza” (kaGaza), ‘de Gaza’, entre outros. Daqui se pode deduzir que, entre Catete e Tete, apesar da distância que os separa, pode haver algo em comum, muito
que os une. Até porque Tete é corruptela de m’tete,
um tipo de cana que abunda nas margens do rio Zambeze (Zembezi) que atravessa a cidade de Tete, mas que nasce na Zâmbia e passa
por Angola e Catete é nome de um tipo de pássaro que provavelmente terá como
seu habitat natural os canaviais das
margens dos rios. Por outro lado, conheço pessoas de Tete, donde sou natural, de ascendência angolana, que muito
provavelmente terão vindo de Catete.
As marcas da rainha Nzinga que nos temos debruçado vão para além de meras palavras gravadas
no vocabulário comum nyungwe,
estendendo-se até a objectos de luxo à época. Por exemplo, ndjinga, ‘bicicleta’, será sem dúvidas um termo nyungwe que a ela se deve. Este meio de
locomoção era na altura tão raro, tão raro, no seio dos anyungwe que, quem o possuísse e soubesse manuseá-lo, era conotado
com poder económico, social, político à laia da rainha Njinga.
O exemplo da bela rainha fez o seu caminho
ao ponto de o nyungwe o ter registado
no vocábulo ndjira, ‘caminho’,
precisamente. Também com o mesmo significado, aparece grafado njila, ‘caminho, rua, abertura,
passagem’, em kimbundu. Tanto do lado
do Atlântico como do Índico, ndjira
deu nome as editoras Njila (Angola) e
Ndjira (Moçambique), congéneres da
Editora Caminho (Portugal).
As duas línguas (nyungwe e kimbundu)
continuam de braços dados no nascer como no morrer. Assim, temos que o nyungwe diz kubala onde o kimbundu
diz kuvuala que significa nascer.
Sucede o mesmo com a designação para criança, mwana, e para morrer, kufa,
tanto em nyungwe como em kimbundu. Estes três conceitos – kubala/ kuvuala, mwana/ mwana e kufa/ kufa – são provas
mais que provadas da nossa irmandade. Já, agora, o número três em ambas as
línguas é tatu. Assim se diz em nyungwe e em kimbundu. Afinal, em nyungwe
e em kimbundu também nos entendemos.
Para fechar com cheve de ouro, convido
para esta mesa de confraternização o caudaloso rio Kwanza que deu nome à moeda nacional de Angola, o Kwanza e às duas províncias angolanas,
Kwanza Norte e Kwanza Sul, entre outros. No outro lado da costa, em Moçambique,
o Kwanza terá motivado o surgimento em nyungwe do verbo kuwandza, ‘fazer aumentar’, possivelmente muito à custa da sua
riqueza económica, cultural e à sua navegabilidade que terá feito confluir e
partir pessoas e bens que poderão ter contactado os nyungwes de Tete.
As evidências linguísticas que apontam
para o traço comum existente entre estes povos bantu, o kimbundu e o nyungwe, neste caso, estão espalhados
noutros campos do saber e noutras práticas sociais, culturais. Mas, a partir
destes exemplos simples, parece não ser difícil de concluir pela existência de laços,
convergências, semelhanças e, por que não, parentescos entre os povos kimbundu e nyungwe, só para nos situarmos nestes. Daí, poder-se afirmar que há
caminhos comuns que podemos trilhar juntos pelo bem e interesse comuns.
*O nyungwe é uma das línguas da província
de Tete, centro de Moçambique, falada por cerca de um milhão de pessoas e o kimbundu é uma das línguas de Luanda,
Bengo, Kwanza norte, Malanje e parte do Kwanza Sul - Angola, que devido a uma
matriz comum – o bantu, têm uma série
de aspectos em comum que denunciam essa cumplicidade.
“Consolidemos aquilo que nos une!”
(Samora Machel)
**Investigador, bantuísta, Docente universitário, doutorado em Linguística
com uma tese intitulada “Descrição Sistémico-Funcional da Gramática do Modo
Oracional das Orações em Nyungwe”
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