domingo, 18 de janeiro de 2015

Alguns traços de união entre nyungwe* e kimbundu


Sóstenes Rego** (sosttete@yahoo.com.br)


Tanto as migrações bantu que ocorreram antes da invasão e ocupação das potências ocidentais a África como o comércio negreiro e a circulação de pessoas e bens que tiveram lugar no período colonial por razões que não interessam aqui elencar, foram o cimento que edificou os laços entre angolanos e moçambicanos, para nos cingirmos apenas a estes. Os padrões de variação genética observados entre estes dois povos irmãos revelam níveis elevados de homogeneidade. Na província de Tete, em Moçambique (caso que me traz aqui), por exemplo, são conhecidos os anyungwe cujos ascendentes tinham vindo de Angola integrados no contingente do exército português com a incumbência de “pacificar” o território que então vivia focos de resistência à ocupação colonial portuguesa. Parte deles acabaria por constituir família e se fixar em Tete.
Inúmeros são os exemplos resgatados da Linguística e/ou das línguas dos quais passaremos em revista apenas alguns, que se supõem sejam aqueles que mais testemunham essa irmandade acima referida. Alguns desses termos de raiz bantu são usados tanto em Angola como em Moçambique e também circulam em Portugal, neste caso, trazidos por imigrantes oriundos daqueles países africanos, sobretudo de Angola.
Para começar em grande e em beleza, os primeiros exemplos de termos nyungwes seleccionados são kuzinga, ‘enxotar; espantar moscas, pássaros, galinhas, cabras, etc.’, kukazinga, ‘tostar, assar (grão de milho, amendoim)’, e kuzunga, ‘passear; procurar; ir à caça’.  Supõe-se que estes vocábulos tenham origem na intrépida e não menos bela rainha de Angola, Nzinga (também grafada como Ginga, Jinga, Zingha, Njinga) Mbandi Ngola. A rainha é conhecida na historiografia africana e ocidental como tendo lutado diplomática, através de várias negociações com os invasores europeus, sobretudo portugueses, mas também por via armada, conduzindo exércitos armados, para expulsar os ocupantes dos seus territórios, tendo granjeado fama e admiração, mas também ódio e temor junto das hostes inimigas. Devido à sua beleza, o verbo gingar, ‘pavonear-se, bambolear-se ao andar’, do português africano (PA), já dicionarizado e, portanto, atestado até no português europeu (PE), também a ela é-lhe atribuído. Os verbos em causa evocam o espírito guerreiro manifestado, o terror causado nas hostes contrárias, as incursões armadas e outras acções realizadas, respectivamente, e fazem alusão ao seu carácter de audácia, bravura e inteligência. Este fenómeno não é exclusivo a ela. Não admira, pois, que uma personagem tão marcante como esta tivesse emprestado o seu nome a campos do saber como o da Linguística.
Recorde-se expressões como “política maquiavélica” (de Nicolau Maquiavel), “erro crasso” (de Marco Licínio Crasso), jacobinismo e outros mais que também surgiram associadas a figuras que uma ou de outra maneira marcaram a sua sociedade e a sua época.
Ainda referente a Nzinga poderá ser o termo zungueira, usado em Angola com o sentido de mulher lutadora que vai em busca do seu ganha pão, percorrendo a cidade e os subúrbios de Luanda a vender produtos vários, normalmente carregados à cabeça, qual guerreira lutando pela sua sobrevivência. O nome zungueira derivará do verbo kuzunga, em kimbundu, que significa ‘passear, deambular’. Em  nyungwe, existe o verbo kuzunga com o mesmo significado do de kimbundu.
O segundo exemplo escolhido nestes trilhos linguísticos é o bué, ‘muito’,  grafado conforme a ortografia portugusa, tão popularizado entre os angolanos e também entre alguns jovens que falam português. Se fosse grafado de acordo com as normas bantu, as semelhnças seriam ainda muito mais evidentes. Uma vez mais, o termo é introduzido em português (incluindo PE) provavelmente a partir do kimbundu kibwe que dá a ideia de imensidão. A palavra nyungwe equivalente e com o mesmo sentido é gwee ou mbwee. As semelhanças entre estes termos nyungwes e o kimbundu parecem-me evidentes.
Nesta busca dos possíveis laços de proximidade latentes e desconhecidos do cidadão comum entre nyungwe e kimbundu, despertou-me interesse linguístico ao ouvir uma amiga minha angolana de Catete (Katete) dizer a expressão “kadye matuji”, literalmente “vai comer merda” no sentido de “vai à merda”. Embora não seja usual, o equivalente nyungwe desta expressão kimbundu é kadye matubzwi. O significado é o mesmo e se não fora a falta de uniformização gráfica das duas línguas bantu, mesmo nas línguas bantu do mesmo país, era em tudo semelhante.
É de salientar que o changana usa a expressão famba ucitinyela, que nada tem a ver com as duas expressões acima aludidas, apesar de nyungwe e changana pertencerem ao mesmo país - Moçambique. O que faz com que o nyungwe seja mais aparentado com o kimbundu, de Angola, do que com o changana, de Moçambique. Reportando-se ao parentesco, equivaleria a dizer que o nyungwe e o kimbundu comportam-se como irmãos entre si, ao passo que nyungwe e changana se compararia a uma relação entre primos. Estas convergências e divergências caracterizam a diversidade cultural e linguística que temos, uma das nossas riquezas intangíveis.
Repare-se neste outro exemplo em que as duas línguas se entrecruzam. Enquanto em kimbundu (também em shona) imbwa designa cão em geral, kambwa significa cão com algumas especificidades, que podem variar desde cão dócil a cão raivoso, em nyungwe, para os mesmos contextos, temos mbwaya, kambwambwa, respectivamente. Este último termo aplica-se em nyungwe com o sentido restrito de cão raivoso. Chamo a atenção para o aparecimento em nyungwe do conceito kambowa, que parece ser da mesma família de imbwa. Curiosamente, o seu significado aparenta ser surpreendente, ‘salteador’. Mas, se reparmos com cuidado, kambwa (kimbundu), kambowa (nyungwe) não só têm formas semelhantes como também semântica idêntica.
Depois destas coincidências linguísticas que acabei de referir, não me passaram indiferentes, os nomes Catete (Angola) e Tete (Moçambique). Julgo serem por demais evidentes as semelhanças na forma destes termos. A diferença formal visível entre eles está na presença/ ausência de ca- (ka-), um elemento que na Linguística Geral se chama prefixo. Em Linguística bantu, o elemento ka- (morfema, para usar o jargão técnico) serve como diminutivo que tanto pode denotar simplesmente tamanho pequeno ou significar carinho ou ainda servir de indicativo de lugar onde (locativo, termo técnico) como em “ka Gaza” (kaGaza), ‘de Gaza’, entre outros. Daqui se pode deduzir que, entre Catete e Tete, apesar da distância que os separa, pode haver algo em comum, muito que os une. Até porque Tete é corruptela de m’tete, um tipo de cana que abunda nas margens do rio Zambeze (Zembezi) que atravessa a cidade de Tete, mas que nasce na Zâmbia e passa por Angola e Catete é nome de um tipo de pássaro que provavelmente terá como seu habitat natural os canaviais das margens dos rios. Por outro lado, conheço pessoas de Tete, donde sou natural, de ascendência angolana, que muito provavelmente terão vindo de Catete.
As marcas da rainha Nzinga que nos temos debruçado vão para além de meras palavras gravadas no vocabulário comum nyungwe, estendendo-se até a objectos de luxo à época. Por exemplo, ndjinga, ‘bicicleta’, será sem dúvidas um termo nyungwe que a ela se deve. Este meio de locomoção era na altura tão raro, tão raro, no seio dos anyungwe que, quem o possuísse e soubesse manuseá-lo, era conotado com poder económico, social, político à laia da rainha Njinga.
O exemplo da bela rainha fez o seu caminho ao ponto de o nyungwe o ter registado no vocábulo ndjira, ‘caminho’, precisamente. Também com o mesmo significado, aparece grafado njila, ‘caminho, rua, abertura, passagem’, em kimbundu. Tanto do lado do Atlântico como do Índico, ndjira deu nome as editoras Njila (Angola) e Ndjira (Moçambique), congéneres da Editora Caminho (Portugal).
As duas línguas (nyungwe e kimbundu) continuam de braços dados no nascer como no morrer. Assim, temos que o nyungwe diz kubala onde o kimbundu diz kuvuala que significa nascer. Sucede o mesmo com a designação para criança, mwana, e para morrer, kufa, tanto em nyungwe como em kimbundu. Estes três conceitos – kubala/ kuvuala, mwana/ mwana e kufa/ kufa – são provas mais que provadas da nossa irmandade. Já, agora, o número três em ambas as línguas é tatu. Assim se diz em nyungwe e em kimbundu. Afinal, em nyungwe e em kimbundu também nos entendemos.
Para fechar com cheve de ouro, convido para esta mesa de confraternização o caudaloso rio Kwanza que deu nome à moeda nacional de Angola, o Kwanza e às duas províncias angolanas, Kwanza Norte e Kwanza Sul, entre outros. No outro lado da costa, em Moçambique, o Kwanza terá motivado o surgimento em nyungwe do verbo kuwandza, ‘fazer aumentar’, possivelmente muito à custa da sua riqueza económica, cultural e à sua navegabilidade que terá feito confluir e partir pessoas e bens que poderão ter contactado os nyungwes de Tete.
As evidências linguísticas que apontam para o traço comum existente entre estes povos bantu, o kimbundu e o nyungwe, neste caso, estão espalhados noutros campos do saber e noutras práticas sociais, culturais. Mas, a partir destes exemplos simples, parece não ser difícil de concluir pela existência de laços, convergências, semelhanças e, por que não, parentescos entre os povos kimbundu e nyungwe, só para nos situarmos nestes. Daí, poder-se afirmar que há caminhos comuns que podemos trilhar juntos pelo bem e interesse comuns.

*O nyungwe é uma das línguas da província de Tete, centro de Moçambique, falada por cerca de um milhão de pessoas e o kimbundu é uma das línguas de Luanda, Bengo, Kwanza norte, Malanje e parte do Kwanza Sul - Angola, que devido a uma matriz comum – o bantu, têm uma série de aspectos em comum que denunciam essa cumplicidade.

“Consolidemos aquilo que nos une!” (Samora Machel)

**Investigador, bantuísta, Docente universitário, doutorado em Linguística com uma tese intitulada “Descrição Sistémico-Funcional da Gramática do Modo Oracional das Orações em Nyungwe” 




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