segunda-feira, 21 de março de 2016

A presença da voz em Niketche de Paulina Chiziane

Por Cristina Mielczarski dos Santos*

Resumo:
Niketche, palavra que dá nome ao livro, é uma dança tradicional do norte de Moçambique. Essa informação cultural e muitas outras são abordadas por meio da narrativa de Paulina Chiziane. A escritora é a primeira a publicar um romance no país, cuja actividade literária é totalmente liderada por homens. O tema que permeia o romance é a poligamia e, nesse contexto, evidencia-se a cultura local por intermédio das lendas e dos rituais de iniciação que fazem parte da tradição oral. Também os provérbios marcam essa presença na linguagem do texto.
“Poligamia é uma rede de pesca lançada ao mar. Para pescar mulheres de todos os tipos. Já fui pescada. As minhas rivais, minhas irmãs, todas, já fomos pescadas. Afiar os dentes, roer a rede e fugir, ou retirar a rede e pescar o pescador? Qual a melhor solução?” - Paulina Chiziane
O termo “oral” vem do latim “os, oris” (BUSARELLO, 2004, p.190), e significa boca, linguagem, enunciado pela voz, que se transmite de indivíduo a indivíduo pela palavra falada, verbal, vocal. Daí o termo oralidade, qualidade do que é oral 1, cuja expressão, segundo o antropólogo Eric Havelock (1995, p.17), caracteriza as sociedades que “se têm valido da comunicação oral, dispensando o uso da escrita”. O autor também afirma que a oralidade é “usada para identificar um certo tipo de consciência, que se supõe ser criada pela oralidade ou que pode se expressar por meio dela” (HAVELOCK, 1995, p.17). Então, de acordo com tais considerações, é interessante observar como se processa esse “tipo de consciência” através da oralidade na Literatura Africana de Língua Portuguesa.
Pode-se dizer que o termo “dispensar o uso da escrita”, em se tratando precisamente de Moçambique2, não é o mais específico. Esse país, na actualidade, apresenta um percentual de 80% de sua população não-letrada e não é simplesmente por opção e, sim, por uma imposição político-social de um território devastado por duas guerras consecutivas: guerra anticolonial (1965-1975) e guerra civil (1976-1992). Entretanto, nesse momento, a discussão em pauta não é sobre política. Tampouco envolve questões como oralidade em oposição à cultura escrita. O escopo é travar um movimento dialéctico entre a escrita e a oralidade. Para tanto, faz-se necessário elucubrar na obra da escritora moçambicana Paulina Chiziane elementos da oralidade como os provérbios, os ditos populares, as expressões quotidianas e máximas constantes no imaginário africano. Conforme esses aspectos, muitos dos provérbios também circulam na tradição oral brasileira.
1. Origens
A oralidade, nos anos 60 do século XX, teve um número significativo de estudiosos que a colocaram em evidência: A galáxia de Gutenberg (The Gutenberg Galaxy), de Mchluhan (1962), O pensamento selvagem (La pensée sauvage), de Lévi-Strauss (1962), As consequências da cultura escrita (The consequence of Literacy), de Jack Goody e Ian Watt (1963) e também Prefácio para Platão (Preface to Plato) de Havelock (1963). Mesmo que tenha sido explorada essa temática em tal década, já em 1928, Milman Parry, com O epíteto tradicional em Homero (L’Epithète tradionelle dans Homère), tinha inaugurado esse género.
Sendo assim, estudos e discussões sobre a Literatura Oral não são recentes e permanecem até à contemporaneidade.
Em 1982, o padre jesuíta Walter Ong, em sua obra “Oralidade e cultura escrita” (Orality and Literacy), destaca o seguinte: denominam-se “culturas de oralidade primária as que se definem por desconhecerem a escrita ou impressão gráfica, e culturas de oralidade secundária aquelas em que a expressão e a criação dependem da escrita e da impressão” (ONG, 1998, p.41). O autor aborda também que a comunicação oral se ampara na alta tecnologia – rádio, telefone, televisão. Nesse contexto, é mais relevante tratarmos do capítulo três, “Sobre a psicodinâmica da oralidade”, do qual constam especificidades do pensamento estruturado em sociedades de cultura oral primária. Segundo Ong (1995, p.42), sem a escrita 2 A taxa de alfabetização, de acordo com o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento de 2007/2008.
O índice de alfabetização em Moçambique é de menos de 50 por cento, com quatro dentre cinco mulheres e um de cada três homens incapazes de ler.
 “As palavras em si não possuem uma presença visual, mesmo que os objectos que elas representam sejam visuais. Elas são sons.” O teórico afirma ainda que os povos orais consideram as palavras dotadas de grande poder: “O som sempre exerce um poder” (ONG, 1998, p.41). Ele inclusive aponta inúmeras características do pensamento e da expressão fundados na oralidade. Dentro dessa perspectiva, será dada maior ênfase à estilização formular:
Numa cultura oral primária, para resolver efectivamente o problema da retenção e da recuperação do pensamento cuidadosamente articulado, é preciso exercê-lo segundo padrões mnemónicos, moldados para uma pronta repetição oral. O pensamento deve surgir em padrões fortemente rítmicos equilibrados, em repetições ou antíteses, em aliterações e assonâncias, em expressões epitéticas ou outras expressões formulares, em conjuntos temáticos padronizados, em provérbios que são constantemente ouvidos por todos, de forma a vir prontamente ao espírito, e que são eles próprios modelados para a retenção e a rápida recordação – ou em outra forma mnemónica. (ONG, 1998, p.45)
O autor parte do princípio de que, nessas culturas, a palavra é um produto sonoro que determina “os modos de expressão e os processos mentais”. O questionamento basilar evidencia-se, assim, da seguinte maneira: como os autores empregam elementos característicos da oralidade na literatura escrita?
Sob o viés do antropólogo Amadou Hampaté Bâ, quando falamos de tradição africana, reportamo-nos para a tradição oral: Nenhuma tentativa de penetrar a história e o espírito dos povos africanos terá validade a menos que se apoie nessa herança de conhecimentos de toda a espécie, pacientemente transmitidos de boca a ouvido, de mestre a discípulo, ao longo dos séculos. (HAMPATÉ BÂ, 1980, p.181)
Um dos representantes da tradição oral transmitida de “boca a ouvido” é o provérbio que pertence ao “repertório artístico da textualidade oral” (MOREIRA, 2003, p.170) e que endossa a voz oracular assumindo no texto uma conotação poética.
2.  A oralidade na obra de Paulina Chiziane Paulina Chiziane nasceu em Manjacaze, província de Gaza, sul de Moçambique. Ela é considerada uma das primeiras mulheres a escrever um romance no seu país. No entanto, Chiziane afirma não escrever romances e, sim, estórias. Nas palavras da autora, “sou contadora de estórias e não romancista. Escrevo livros com muitas estórias, estórias grandes e pequenas. Inspiro-me nos contos à volta da fogueira, minha primeira escola de arte.” (CHIZIANE, 2002, contracapa). Sua “contação” de histórias está no sangue, herança de sua avó, que pertencia ao grupo étnico macagandane. A escritora chegou a morar e trabalhar na Zambézia, centro do país.
A escritora escreveu “A balada de amor ao vento” (1990), “Ventos do Apocalipse” (1995), “O sétimo juramento” (1999), entre outros. No entanto, é analisado neste trabalho o romance “Niketche: uma história de poligamia” (2002), cujo nome deriva de uma dança sexual feminina, aprendida pelas meninas durante os rituais de iniciação, para que afirmem ao mundo que são mulheres. A dança macua é originária da Zambézia, região centro de Moçambique. Nessa perspectiva, a autora, no corpo da narrativa, explicita sobre esse ritual: “Niketche. É a dança do sol e da lua, dança do vento e da chuva, dança da criação. Uma dança que mexe, que aquece. Que imobiliza o corpo e faz a alma voar. [...] Movem o corpo com arte saudando o despertar de todas as primaveras. Ao toque do tambor, cada um sorri, celebrando o mistério da vida ao sabor do niketche.” (CHIZIANE, 2004, p.160).
Nesse livro, a autora conta a história do comandante António Tomás, o Tony, e da sua mulher Ana Maria, a Rami. A ficção ocorre no presente, sendo narrada na primeira pessoa por ela, a narradora-protagonista. É por intermédio de sua voz que ouvimos a história dela e também das amantes de seu marido e de tantas outras mulheres que contam suas trajectórias de vida. Seus percalços enquanto indivíduos do sexo feminino ocorrem frente a uma sociedade dividida deste modo: Feminino/Masculino, Matriarcal/Patriarcal, Monogamia/Poligamia, Tradição/Contemporaneidade, Norte/Sul.
O romance é permeado pela cultura africana, com suas lendas, mitos e riquezas da tradição oral. Ao longo da leitura surge um mosaico de culturas: maconde, macua, ronga, tsonga, machangana. O legado dessas culturas é apresentado por intermédio de Rami (etnia ronga) e pelas outras mulheres de Tony: Julieta (sul de Moçambique), Luísa (etnia “xingondo”), Saly (etnia maconde) e Mauá (etnia macua). Elas formam junto com Tony (etnia machangana) “um hexágono amoroso” (CHIZIANE, 2004, p.58).
A tradição oral africana permeia a narrativa. Uma representante dessa cultura é, especificamente, a lenda da princesa Vuyazi, a princesa insubmissa estampada na lua: “Era uma vez uma princesa. Nasceu da nobreza mas tinha o coração de pobreza. Às mulheres sempre se impôs a obrigação de obedecer aos homens. É a natureza. Esta princesa desobedecia ao pai e ao marido e só fazia o que queria. Quando o marido repreendia, ela respondia. Quando lhe espancava, retribuía. Quando cozinhava galinha, comia moelas e comia coxas, servia ao marido o que lhe apetecia. Quando a primeira filha fez um ano, o marido disse: vamos desmamar a menina e fazer outro filho. Ela disse que não. Queria que a filha mamasse dois anos como os rapazes, para crescer forte como ela. Recusava-se a servi-lo de joelhos e aparar-lhe os pentelhos. O marido, cansado da insubmissão, apelou à justiça do rei, pai dela. O rei, magoado, ordenou ao dragão para lhe dar um castigo. Num dia de trovão, o dragão levou-a para o céu e a estampou na lua, para dar um exemplo de castigo ao mundo inteiro. Quando a lua cresce e incha, há uma mulher que se vê no meio da lua, de trouxa à cabeça e bebé nas costas. É Vuyazi, a princesa insubmissa estampada na lua. É a Vuyazi, estátua de sal, petrificada no alto dos céus, num inferno de gelo. É por isso que as mulheres do mundo inteiro, uma vez por mês, apodrecem o corpo em chagas e ficam impuras, choram lágrimas de sangue, castigadas pela insubmissão de Vuyazi” (CHIZIANE, 2004, p.157).
O excerto acima emprega a fórmula clássica para iniciar uma narrativa ficcional: “Era uma vez uma princesa”. A lenda é transcrita em frases curtas, com rimas: nobreza/pobreza/natureza. O tempo verbal utilizado no pretérito imperfeito dá ritmo à narrativa: desobedecia/queria/repreendia/respondia/retribuía. Verificam-se também, por entre as linhas dessa narrativa, os modos de funcionamento do sistema patriarcal: a obediência aos homens – pai e marido, os comportamentos diferenciados relacionados à educação do homem e da mulher, o castigo para a desobediência às tradições, entre outros. Rami, a protagonista, ao longo do romance, irá retomá-los em vários momentos.
Interessante observar que o termo macua “niketche”, o ritual iniciático e a lenda da princesa Vuyazi podem representar a dicotomia cultural pertinente ao norte e ao sul de Moçambique. A dança representa o sul com um posicionamento mais liberal e a lenda representa o norte do país, que segue um modelo paradigmático judaico-cristão, fortemente influenciado pelo patriarcalismo colonial europeu. Essa dicotomia entre Norte-Sul é bem representada nestes trechos:
- Mulheres bonitas só no norte, seus machanganas3! As nortenhas são leves e livres. As nortenhas são belas. As vossas mulheres são pesadas, são grossas, têm o rabo grande de comer tanto amendoim!
A poligamia é um sistema com regras próprias, e, nessa matéria, o sul é diferente do norte [...] - Vocês do norte, são escravos delas. Trabalham a vida inteira só para elas. Até os filhos têm apelido da mãe. Que tipo de homens vocês são?
- E vocês do sul são brutos, tratam as mulheres como bichos. Alguém, neste mundo, sabe que é o verdadeiro pai dos filhos da mulher? O senhor que tanto nos insulta, tem a certeza de que os filhos que diz serem seus o são, de certeza? Na nossa terra, os filhos têm o apelido da mãe, sim.
Pai é dúvida, mãe é certeza. Um galo não choca ovos, nunca. É bom dar a César o que é de César. (CHIZIANE, 2004, p.207).
Nortenhos ou sulistas, cada um quer ser mais alto e chegar primeiro ao umbigo do céu. Cada um quer ser garça, falcão, albatroz, para alcançar mais depressa o alto do monte onde ainda pende um cacho de banana e uma galinha assada no braseiro do mundo. (CHIZIANE, 2004, p.210)
Assim como as lendas e os rituais de iniciação que compõem a tradição oral, formalmente, os provérbios marcam essa presença na linguagem do texto.
3. Provérbio – o poder da palavra. O provérbio, muito embora seja conhecido por muitos em nossa sociedade, enfrenta uma dificuldade imensa quanto à sua definição. Todavia, é feito um pequeno esclarecimento de alguns dos conceitos vigentes para uma maior compreensão a seu respeito nesse contexto.
Conforme Luiz Costa Lima (1974, p.14), destaca-se esta afirmação: 3 Machanganas: uma das etnias tsonga.
A armadura simples do provérbio permite, por conseguinte, que ele seja manejado com facilidade pelo falante; sua formação poética promove a sua retenção; a sabedoria que contém, sua aplicação a um número indefinido de situações. Pelo provérbio, com efeito, é todo um saber comunal que, elipticamente, se precisa e condensa.
Muitas definições possuem traços em comum. Tal como consta no Dicionário Houaiss de Língua Portuguesa (2001, p.2321), o provérbio é uma “frase curta, de origem popular, com ritmo e rima, rica em imagens, que sintetiza um conceito a respeito da realidade ou uma regra social ou moral. Provérbio, adágio, dito, ditado, rifão, máxima.”
Também Helena Duarte (2006, p.32), após muitas pesquisas, define assim o provérbio: “Um enunciado cristalizado, pertencente ao património linguístico, mas de autoria anónima, transmitido oralmente, ao qual subjaz uma verdade de carácter geral e cuja autonomia sintáctica permite a sua conexão com as múltiplas situações em que se aplica.”
Logo, sabemos que o provérbio é considerado um texto tradicional como os mitos e os símbolos. Possui inúmeros traços que o definem: origem remota e anónima, conteúdo metafórico, carácter diacrónico, valor semântico de verdade universal. O seu carácter rítmico e sua formulação facilitam a memorização, como elucida Ong (1998, p.45-46) nessa passagem:
As fórmulas ajudam a implementar o discurso rítmico, assim como funcionam, por si só, como apoios mnemónicos, como expressões fixas que circulam pelas bocas e pelos ouvidos de todos [...] “Dividir para conquistar.” “Errar é humano, perdoar é divino”. [...] Fixas, muitas vezes ritmicamente equilibradas, expressões desse e de outros tipos podem ser ocasionalmente encontradas impressas; na realidade, podem ser “procuradas” em livros de adágios, mas nas culturas orais não são eventuais, são constantes. Elas formam a substância do próprio pensamento. Sem elas, este é impossível em qualquer forma extensa, pois é nelas que consiste.
Nessas culturas orais, a própria lei está encerrada em adágios formulares, provérbios, que não constituem meros adornos jurídicos, mas são, em si mesmos, a lei.
Dominique Maingueneau, por intermédio de sua perspectiva linguística, assevera-nos que o indivíduo, ao utilizar o provérbio, “toma sua asserção como o eco, a retomada de um número ilimitado de enunciações, anterior do mesmo provérbio”, como vemos:
O provérbio representa um enunciado limite: o “locutor” autorizado que o valida, em lugar de ser reconhecido apenas por uma determinada colectividade, tende a coincidir com o conjunto defalantes da língua, estando aí incluído o indivíduo que o profere. Este último toma sua asserção como o eco, a retomada de um número ilimitado de enunciações, anteriores do mesmo provérbio. (MAINGUENEAU: 1989, p.101)
Esse eco possui, portanto, o saber da tradição oral. Reactivá-lo na escrita significa reactivar no texto esse conhecimento, que modela, (re)cria ou, simplesmente, usa o provérbio para complementar uma afirmação.
In Nau literária: Dossiê: literaturas africanas de LP
*Cristina Mielczarski dos Santos - Mestranda em Letras pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), na área de Literaturas Portuguesa e Luso-Africana.

jornal notícias de maputo








Sem comentários:

Enviar um comentário