sexta-feira, 5 de fevereiro de 2016

Massacre de 1953 em São Tomé e Príncipe

Albertino Bragança 
Comemorou-se a 3 de Fevereiro de 2016, o 63º aniversário dos trágicos acontecimentos de 1953, em que milhares de santomenses foram barbaramente subjugados pelo terror e pelas arbitrariedades e desmandos dos carrascos a soldo do governador Carlos Gorgulho.
Tratando-se de um facto histórico comemorado em cada ano e de que todos temos vindo a tomar conhecimento, ainda que de forma avulsa, optei por incidir a tónica desta comunicação nas causas remotas e próximas que lhe estiveram na origem, de modo a encontrar um fio condutor susceptível de facilitar o seu melhor entendimento, em particular às novas gerações.
Daí que tenha enveredado por um texto que espero suficientemente esclarecedor, capaz de ser acompanhado sem dificuldade por todos e de servir de base a um diálogo aberto acerca de um tempo de repressão e barbárie que tanto marcou a nossa história.
Tudo começou com a chegada a S. Tomé e Príncipe, em 5 de Abril de 1945, do governador Carlos de Sousa Gorgulho, militar português da ala reacionária e conservadora que pusera fim, com o golpe desencadeado pelo General Gomes da Costa em 28 de Maio de 1926, à 1ª República Portuguesa.
Gorgulho trazia consigo dois grandes objectivos, duas verdadeiras obsessões que se articulavam num plano que teria de levar a cabo a qualquer custo:
·        Resolver o crónico problema da mão-de-obra com que se confrontava a economia de STP, traduzido pela necessidade de importação, sob o regime de contrato, de trabalhadores de outras colónias, perante a firme recusa dos santomenses de trabalharem sob esse regime;
·        Em função da concretização deste objectivo, ser nomeado para o cargo de Governador-Geral de Angola. 
Para o efeito, durante os três primeiros anos do seu mandato, Gorgulho procurou ganhar a estima da população, através de uma governação verdadeiramente realizadora, como primeira etapa para a sua reeleição: os passeios em carro descoberto, distribuindo rebuçados e guloseimas pelas crianças, o sorriso constante nos lábios saudando a multidão, as obras de reestruturação da cidade, fixação do salário mínimo para os trabalhadores do comércio, indústria e agricultura, limitação do horário de trabalho, criação da Escola das Artes e Ofícios, saneamento e aterro de pântanos, a terraplanagem de pistas para aviões, reparação de estradas e construção de aquedutos, construção de casas para funcionários, construção de um pavilhão de isolamento para tuberculosos, etc.
O que terá então acontecido para Gorgulho mudar a sua política de aproximação à população e enveredar pelo caminho das rusgas e prisões por que se caracterizaria a partir daí a sua governação, que iria redundar no massacre de 1953?
Vejamos as causas remotas desse trágico acontecimento:
·        A necessidade de mão-de-obra
Nos finais da década de 40, debatendo-se elas próprias com graves problemas de escassez de mão-de-obra para o seu desenvolvimento, as colónias fornecedoras de contratados, sobretudo Angola e Moçambique, começaram a restringir a saída dos mesmos para S. Tomé e Príncipe.
Esta mesma época foi marcada pela baixa de produção do café e do cacau, o que fez elevar no mercado internacional a sua procura e, daí, os respectivos preços. Havia, pois, que intensificar a sua produção e isso só era possível mediante o concurso de uma mão-de-obra abundante e barata, isto é, através do recrutamento da mão- de-obra local. Ou seja, os forros tinham forçosamente que trabalhar sob o detestável regime de contrato.
Encontrando resistência, Gorgulho recorreu à força: rusgas constantes, trabalhos forçados, espancamentos, prisão arbitrária dos nativos.
·        A mentalidade de superioridade dos forros
No passado senhores de terras, do que resultou a existência de uma importante elite que tanto no interior como em Portugal se empenhou na defesa das respectivas populações, o forro, a quem nunca foi atribuído o estatuto de indígena, considerava-se por isso superior aos trabalhadores contratados das roças e mesmo aos europeus, sentimento que se constituiu numa poderosa arma de oposição ao regime colonial.
·        A aversão dos serviçais contratados pelo facto de os forros não trabalharem nas obras públicas e nas roças sob o regime de contrato, não obstante as várias tentativas feitas após a abolição da escravatura (1875) por governadores coloniais, a pedido dos proprietários brancos de grandes latifúndios visando a contratação dos nativos.
·        Firme e persistente rejeição dos forros, sempre apegados ao trabalho livre e de empreitada ou nas suas glebas.
·        As políticas falhadas de transferência de forros de STP para outras paragens e de fixação no país de milhares de contratados de Angola, Moçambique e Cabo Verde, esta última a levar à construção de aldeamentos para o seu acolhimento: o objectivo consistia no significativo aumento da população e na consequente diminuição da importância dos forros.
·        A ideia de liquidação da elite esclarecida e dizimação da população forra.
·        A destruição da vida económica dos forros, através da:
  - promulgação da Portaria nº 32 de 1 de Julho de 1930, pela qual foi criado o imposto individual indígena, o chamado imposto de cabeça;
- proibição de extração e venda do vinho de palma (portaria de Janeiro de 1947);
  - interdição do fabrico e venda da aguardente de cana (portaria de Junho de 1947);
  –erradicação de algumas associações nativas (Associação dos Socorros Mútuos e o Sporting Club de S. Tomé)
·        Trindade: Palco de oposição ao poder colonial:
- O incidente no dia de Deçu Padê (Junho de 1900), com a morte de um santomense;
- Movimento dos soldados nativos do Corpo de Polícia em 1921 contra europeus, com fortes repercussões na Trindade, de que resultaram mortes.
- Incidentes em 1926 ocorridos na eleição do Dr. Aires de Menezes a membro do Concelho Colonial, que redundaram na destruição por europeus do recheio da sala da Liga dos Interesses Indígenas, importante associação dos nativos.
- Fraca participação dos trindadenses nas eleições presidenciais portuguesas (fraudulentas) de 1949.
- A recusa da população da Trindade em ir receber Gorgulho no aeroporto aquando do seu regresso de Portugal em Outubro de 1951.
- Trindade era, por sua vez, residência do grande nacionalista e símbolo da resistência popular ao domínio colonial, o Eng.º Salustino da Graça do Espírito Santo, a quem Gorgulho imputava toda a rebeldia e a irreverência da população local.
A estas causas vieram juntar-se as seguintes causas próximas:
·        Carta dos naturais de STP enviada a 30 de Setembro de 1950 para o Ministro do Ultramar, dando-lhe conta das injustiças praticadas por Carlos de Sousa Gorgulho contra a população nativa, o que enfureceu sobremaneira o Governador
·         O descontentamento e a tensão provocados na população forra pela entrevista dada em 8 de Janeiro ao jornal Voz de S. Tomé pelo Inspector da Curadoria Geral dos Serviçais, Franco Rodrigues, preconizando o nivelamento social, colocando no mesmo patamar forros, angolares, minuiês e serviçais contratados das roças, prenunciando o advento do contrato para todos.
·        A afixação de panfletos de revolta nas paredes de diversos edifícios na cidade (madrugada do dia 2 de Fevereiro), ameaçando de morte o Governador se ele permitisse que tal viesse a ocorrer.
·        Nota oficiosa do Governador desmentindo a ideia de pretender contratar os nativos (Início da tarde do dia 2 de Fev).
·        Destruição de muitas das citadas notas oficiosas, sobretudo na Trindade.(manhã de 3 de Fevereiro).
OS PRIMEIROS ACONTECIMENTOS 
·        A morte de Pontes por José Mulato, que chefiava a primeira equipa de rusga na Trindade, que tinha como incumbência descobrir os autores dos panfletos e quem tinha rasgado as notas oficiosas (dia 3 de Fev., pelas 22horas).
·        Interrogatório e prisão do Eng.º Salustino Graça, de imediato enviado para o Príncipe, em companhia de outros presos. (madrugada do dia 4).
·        Rusgas ferozes na Trindade e suas localidades feitas por polícias recrutados dentre criminosos, contratados das roças e por voluntários brancos e mestiços armados à caça do forro. Casas incendiadas, perseguições, prisões de inocentes, mortes. A população aterrorizada escondendo-se no mato (Dia 4 de Fev.)
·        A morte do alferes Jorge Amaral por Zé Cangolo (manhã de 4 de Fevereiro).
·        A partir daí, o cortejo de barbaridades por todos conhecido: intensificaram-se as rusgas, as batidas nos matos de Trindade e arredores, a caça aos nativos desprotegidos e entregues à sua sorte, as suas casas incendiadas, os bens roubados, ondas de terror à solta.
Multiplicaram-se as prisões, as humilhações, as torturas, as correntes nos pés, na cintura e no pescoço, os choques eléctricos, as confissões forçadas, as mortes por asfixia.
Sobre mais de mil santomenses recaiu então o peso da morte, na Trindade e nas celas do Corpo da Polícia e em Fernão Dias. Vidas ceifadas pela irracionalidade e pela intolerância, que tudo procuravam destruir à sua passagem.
Protegidos pelo isolamento das ilhas e movidos pelo mais odioso intuito de repressão, que a impunidade tanto contribuía para estimular, os algozes divertiam-se com a angústia de cidadãos brutalizados e despojados do seu inalienável direito à tranquilidade e à paz. Impunidade que só encontraria fim com a vinda, em 4 de Março de 1953, de uma delegação da PIDE, que desmentiu a versão de Gorgulho segundo a qual os bárbaros acontecimentos se prendiam com a necessidade de combater uma revolta comunista preparada pelos nativos e, sobretudo, com a chegada ao país, em 25 do mesmo mês, do famoso jurista português Dr. Manuel João da Palma Carlos, a convite da família Graça do Espírito Santo, tendo como finalidade tratar da libertação dos presos, o que viria de facto a conseguir.
Mas, infelizmente antes disso, para alguns destes, o fim estava inevitavelmente traçado. Os seus gritos aflitivos, cortantes como lâminas, encheram então as imediações do Corpo de Polícia, bem como o espaço solitário de Fernão Dias. O mar e a terra acolheram então, impotentes, os seus corpos martirizados e desfalecidos.
Noutros, vítimas das mais horríveis crueldades, a prisão deixou marcas indeléveis e encurtou o percurso de uma vida lesada pela mais degradante e repulsiva violência.
Outros ainda, os que restam de tão vergonhosa tragédia, continuam juntos de nós, testemunhas dolorosas de uma época que a marcha implacável do tempo como que nos leva a esquecer e banalizar.
A todos eles nos cumpre o dever de homenagear e resgatar a memória, pela grandeza do seu gesto e pela forma generosa como se empenharam para reforçar em nós o sentimento colectivo de nação, que o seu sacrifício tanto contribuiu para cimentar.
Por eles, pelo sacrifício que consentiram para que esse sentimento se revelasse de forma tão dinâmica e congregadora, construamos um país solidário e fraterno, centrado nas suas raízes, mas aberto ao contributo de outros povos e civilizações. Um país soberano, democrático e preocupado com o desenvolvimento humano, que se reveja na sua memória colectiva e entenda a história como a interpenetração dinâmica do passado, do presente e do futuro. Um país constituído por um povo que deve manter-se firme nas suas convicções, que delas não abdique por dinheiro ou benesses afins, digno da grandeza e da dignidade de que eles, em circunstâncias tão difíceis, foram capazes de demonstrar.

Façamo-lo assim, de modo a comungarmos com Francisco José Tenreiro e com ele dizer ao mundo: ” Os teus filhos não morreram, Mãe, Eu oiço um rio de almas reluzentes cantando: nós não nascemos num dia sem sol ”.

Téla Non

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