Por Chiba Mendes
O BANHO frio logo cedo
gela o corpo magro de Betinho. E ele treme, treme, não da frigidez do líquido
que jorra do chuveiro, mas do líquido alcoólico que o seu organismo necessita.
Treme bastante e vibra ao tentar em busílis se arrumar para o serviço.
Acena, se despedindo da
esposa que há muito tempo dispensou o seu beijo alcoolizado, sai disparado e
rapidamente atropela a estrada que o leva à barraca que dista a quinhentos
metros da sua casa. Gagueja o pedido urgente de uma bem gelada. Antes de
atender a emergência diariamente peculiar, Zuzú recorda das suas dívidas
anteriores. Betinho está surdo para cobranças da barraqueira e se impacienta na
espera infernal do seu remédio matinal. É assim todos os dias. Não há dia
diferente, toda manhã ele está quente. Sua esposa pensa que ele vai ao serviço,
mas seus filhos o costumam ver pela carrinha escolar. Seus colegas gritam: está
ali o teu pai. O mais velho finge não ouvir enquanto a mais novinha acena
inocente e alegremente ao seu pai que se esconde atrás do muro.
O tempo tratou de apagar
da sua lembrança a última vez que Betinho se preocupou com os filhos, a última
carícia à sua amada e carente esposa. Ele mesmo confessa aos seus companheiros
líquidos da roda: não participei e nem participo na educação dos meus filhos.
Das pouquíssimas vezes que minha mulher me desejou ter na cama, a bebida já
tinha antecipado e me levado a um profundo son(h)o amoroso.
O tempo fugiu de Betinho
e ele corre atrás da bebida para que o tempo nunca mais o alcance. Ele corre
não para se satisfazer dela, mas para ser satisfeito por ela. A bebida é que já
não consegue ter o mesmo valor e sabor sem o organismo do homenzinho, que se
tornou o preferencial habitat dela.
Na quarta ou quinta
cerveja, Betinho começa a exibir o seu conhecimento vasto. Lê bastante um pouco
de tudo e tem um leque rico de assuntos diversos onde se imbui como peixe na
água. Bom de conversa e bom de fofoca. Fala tão bem de ciência como também se
mete na vida alheia. Não é facilmente enganado por se informar sempre. Sempre
seria a forma exagerada de ofender a bebida, por ela ser a eterna companhia do
Betinho. As férias demasiadas longas, tanto em relação a família como ao
serviço, fazem-no homenzinho da barraca. É lá onde se delicia das informações
televisivas, onde discute assuntos do dia-a-dia, onde procura saber e comenta
da vida deste e daquele, onde se alimenta quando Zuzú se recorda de praticar
aquela obra de caridade: dai de comer a quem tem fome. À revelia da
esposa, Betinho é embebedado sem se embriagar. Ela acredita piamente na
presença honrosa do seu marido no serviço. Os filhos guardam consigo esse
segredo.
Após várias tentativas e
chamadas de atenção por parte da Direcção dos Recursos Humanos da instituição,
esta conforma-se e é decretada e autorizada formalmente a dispensa por tempo
indeterminado ao incorrigível Senhor Alberto Cunetácio Mosse. Ou seja, sem
direito a faltas nem descontos salariais, a Direcção assumiu legalmente a
bebedeira do Betinho. Como gotas de água no deserto, são as idas do homenzinho
ao serviço, para reclamar do atraso e do não aumento salarial. Nas contáveis e
relâmpagas vezes da sua presença o motivo é de total celebração. Seus colegas
comemoram a ímpar visita de Betinho e se enchem de alegria e curiosidades
infinitas do colega. Seu chefe despacha reuniões para acelerar o reencontro com
o seu ex-permanentemente-dispensado-colaborador. E, nas pressas da euforia, os
abraços são regados de muito champanhe e logo é ordenada a compra de comida e
bebida para a festa surpresa do visitante. Sempre que Betinho se faz presente
as portas da instituição são fechadas para comemoração. Após as festas, o chefe
tem sempre o cuidado de perguntá-lo: deixo-te em casa ou na barraca? Betinho
olha para o relógio e confirma que a essa hora sua esposa não está em casa, os
filhos foram passar férias em casa da avó, então o caminho está livre para um
descanso merecido.
A meio do caminho
Betinho corrige sua vontade e pede ao chefe que lhe deixe na Zuzú. Satisfeita a
solicitação, a bebida mergulha-se no cérebro do homenzinho que se atrapalha
diante da roda dos outros. Sua esposa surpreende-o em estilo de orador, com o
dedo indicador em riste, falando e ganhando voz de total razão. Fita-o como
disparo de bazooca e se retira casmurra. Aquele grito
silencioso fez gelar o ambiente e nem zumbido qualquer se ouviu.
Mesmo de caminhar recto,
seus miolos enlouquecem e voam para questões sem respostas e tudo se confunde
lentamente como o fumo preguiçoso do seu espertinho cigarro. Caminhando, deixa
que a bebida toma conta de si mesmo sem tocá-lo, divaga suas interrogações em
lágrimas interrompidas e calcadas. Não é seu normal se sentir assim. Ele é
macho, como faz questão de sempre repetir para si e para os outros. Não chora e
nem deve, foi assim que aprendeu.
Abre a porta de casa e
um silêncio profundo o invade. Com o silêncio está o vazio enorme da casa. Nem
o mínimo barulho dos restantes ratos se ouve. Betinho não acredita e faz um
fácil raio-x à solitária casa e um minúsculo papel cansado sobrevoa baixinho
sobre os cantos da casa. Nele uma escrita: fica com a tua bebida seu bêbado.
Betinho não se condói, alegra-se por essa notificação vinda de sua esposa, por
essa liberdade que sempre almejou ter e que agora oficialmente a tem, o
divórcio alegremente antecipado em detrimento à sua fiel líquida companheira, a
amiga inseparável de todos os tempos. A bebida ganha vida, forma, em seu corpo.
Personifica-se e até conversam baixinho, alto, trocam confidências, conselhos e
é orientado e guiado por ordens alcoólicas. É respeitosamente submisso à
bebida, faz a devida vénia, idolatra-a, e aconchega-se a ela carinhosamente.
Sai como um jacto, não
precisa fechar a porta duma casa nua, não sente o chão, o ar agride-o na cara e
no peito e ganha mais ímpeto à caminho da Zuzú. Gargalhando e ainda ofegante,
ordena uma rodada à turma que já se encontra em alto estado de embriaguez,
mesmo assim, todos levantam os braços comemorando e agradecendo o gesto de
Betinho. Sem ainda se saber do motivo da grande felicidade do homenzinho, todos
brindam animados num vozeario ensurdecedor, quando é anunciado o motivo da
festa: minha mulher finalmente me abandonou. Após um instantinho silencioso,
eis que alguém intervém: tua mulher já te tinha abandonado há muito tempo
homem, só compartilhavam o mesmo tecto. Todos concordaram festejando aquela
ruptura conjugal. O formalismo da separação enche de alegria e tranquilidade o
peito de Betinho, a sensação de liberdade tem mais sabor à libertação total daquele
demónio, daquele satanás em forma de mulher. E os seus filhos? Se nunca se
preocupou com eles porque o faria justamente agora que terá mais sossego, não
terá mais impedimento de beber e se embebedar sem se esconder e sem fugir da
esposa e filhos.
Zuzú manda várias
rodadas sob comando de Betinho que já troca os passos. Querem levá-lo à casa,
recusa-se. Sou do mundo, deixem-me no chão, eu sou da terra, não preciso de
tecto nenhum – gagueja Betinho, babando-se todo. Ele é homem de uma palavra só.
Seu desejo foi tristemente cumprido contra vontade e sob sondagem de amigos que
faziam turno para guarnecê-lo. Nos intervalos dos sonhos tortos, vocifera:
podem ir para vossas casas, ninguém fará mal a um ninguém que não tem ninguém.
Os colegas da bebida contrariam seu desejo.
Betinho acorda
encharcado, cozido, seus olhos testemunham a noite ressacadamente mal dormida.
Como todo o sempre matutino seu corpo vibra clamando por álcool, desta vez não
precisa se esforçar e correr até a barraca da Zuzú. Do mesmo chão que há pouco
tempo era o seu leito, estica o seu braço pedindo o seu remédio. Zuzú retira do
congelador a sorridente cerveja que é acolhida agradavelmente pelo Betinho.
Mais que metade do líquido é agressivamente atirada ao chão por causa dos
tremeliques vibradores que quase impedem os goles destinados à boca. Só na
segunda ou terceira é que se restabelecem os membros de Betinho. Ele conversa
sem se levantar. Zuzú serve uma sopa quentinha que o faz transpirar até seu
suor salgado gotejar nela. Motivo de troça, ele não se preocupa. Um estranho
homem traz um recado, Betinho deve se apresentar urgentemente com todas
urgências ao serviço, mas ele se chateia porque o seu compromisso é com o
álcool e não com o emprego, ele já foi empregado há bastante tempo pelo álcool
e é pago por isso. Os amigos insistem-no e ele cumpre em busílis. Resmunga e
vai. Ao chegar, encontra alguns colegas e mais homens desconhecidos
engravatados, sentados ao redor de uma grande mesa na sala de reuniões.
Admira-se franzindo a testa mas corrige a sua postura ajeitando a camisa,
abotoando-a. Indicado para sentar compenetra-se receosamente na cadeira. O mais
gordo e bem trajado do grupo remexe alguns papéis, receia o que vai dizer a
seguir, emenda o seu nariz disfarçando não sentir o cheiro bêbado do embebedado
e sem querer alongar a sua permanência naquela sala fedorenta toma a sua
palavra com posse: Senhor Alberto Mosse, a partir de hoje é o novo Director da
empresa. Só o seu perfil se adequa a este cargo. Betinho gelou mais do que
todas cervejas geladas e congelou o seu sentar como se a cadeira tivesse um
íman que não o deixasse movimentar. Seus lábios pesaram mais do que suas pernas
quando o chamaram àquele local, seus olhos petrificaram no vazio. O seu corpo
ainda não tinha a autorização do distra do um, dois,
três, macaquinho chinês. Foi necessário levarem-no ao colo e ser
acompanhado à barraca.
Betinho desmaiou de
olhos abertos e só a cerveja bem gelada o trouxe de “volta”, quando pergunta o
que terá acontecido.
- Betinho, você é
Director – surpreende-se Zuzú.
- Sou o novo Director da
tua barraca?
- Qual barraca, qual quê
homem. Você é o novo Director da empresa onde trabalha.
O homem ficou louco e
desatou gargalhadas grosseiramente malucas e ininterruptas, até que um dos seus
parceiros bêbados esticou uma gorda, estrondosa e bem equalizada bofetada.
Betinho “acordou” e devolveu com um fraquinho soco. Confusão acesa com direito
a plateia, os insultos mais sórdidos ganharam asas e voaram para uma discussão
inesperada de amigos fiéis do copo. Parem com essa confusão na minha barraca.
Nem parecem amigos – quase que chorava Zuzú. Sem transpirar Betinho fede a
álcool, a transpirar, o seu cheiro é dos urinóis alcoólicos improvisados de
barracas.
Surpreendentemente o
Senhor Alberto Mosse acordou bem cedo, engravafateou-se pegou chapa e foi o
primeiro a chegar ao serviço. Antes de entrar no gabinete acendeu o seu tremido
cigarrito e ficou na porta a espera das justificações de atraso dos seus
homens. No fim das cobranças reuniu-os a todos e rispidamente avisou: a partir
de hoje não admito nenhum atraso. Estamos percebidos? O silêncio foi a uníssona
resposta gelada.
Betinho garantiu avanços
irrevogáveis que todos os dias depois do expediente haveria happy hours bem
caprichadas com álcool e acepipes. O nível de produção e motivação disparou a
olhos gordos. Não houve mais atrasos nem faltas.
Uma semana depois de
muito trabalho, dedicação e motivação, Betinho decidiu procurar sua esposa e
pedir para voltar com as crianças. Ele defende que não se pede perdão mas sim
compreensão. Foi o que fez, foi pedir a esposa que o compreendesse e gostaria
de reconstruir uma família destruída há muito tempo. Depois de muita relutância
a solicitação de Betinho foi aceite e o regresso rapidamente organizado.
Alegremente visível
Betinho foi à Zuzú comemorar o regresso da sua família e brindar pela
directoria da empresa. Seus amigos receberam-no euforicamente e as rodadas
engordaram a bebedeira. Todos ansiavam ouvir as novidades do Director Alberto e
este, cheio de estilo mandava mais e mais rodadas. A noite já embriagava as
tontas conversas e avançava promessas cambaleantes quando, o pretérito
agressor/salvador do desmaio do Betinho vomita: você Betinho, está aí a gingar
muito porque é Director e já tem muito dinheiro, até foi buscar de volta a
mulher. Agora, me diz uma coisa, se você já se tinha entregado à bebida há
muito tempo e não fazia nada com sua mulher, de quem acha que são aqueles dois
filhos?
O fingimento de Betinho
era visivelmente triste e continuou a beber sem responder ao seu “amigo”. A
filha da Zuzú saltava a corda na varanda iluminada, Betinho convidou-se perante
o espanto de todos. Onde já se viu um homem enfatado a saltar corda e ainda
mais com copos na cabeça? Betinho pediu uma caixa vazia para se sentar e passado
um tempinho desapareceu. Já aviados de tanto álcool os amigos nem deram conta
da sua falta. Pensando que o estiloso do Betinho fugira de tanta bebida, foram
se despedindo um a um e a barraca fechada.
Ainda ao alvorecer a
vizinhança foi acordada entre gritos estridentes e choros berrantes assistindo
o corpo de Betinho suspenso baloiçando na árvore do quintal da Zuzú.
Jornal Notícias de Maputo
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