Albertino Bragança
Comemorou-se a 3 de Fevereiro de 2016, o
63º aniversário dos trágicos acontecimentos de 1953, em que milhares de
santomenses foram barbaramente subjugados pelo terror e pelas arbitrariedades e
desmandos dos carrascos a soldo do governador Carlos Gorgulho.
Tratando-se de um facto histórico
comemorado em cada ano e de que todos temos vindo a tomar conhecimento, ainda
que de forma avulsa, optei por incidir a tónica desta comunicação nas causas
remotas e próximas que lhe estiveram na origem, de modo a encontrar um fio
condutor susceptível de facilitar o seu melhor entendimento, em particular às
novas gerações.
Daí que tenha enveredado por um texto
que espero suficientemente esclarecedor, capaz de ser acompanhado sem
dificuldade por todos e de servir de base a um diálogo aberto acerca de um
tempo de repressão e barbárie que tanto marcou a nossa história.
Tudo começou com a chegada a S. Tomé e
Príncipe, em 5 de Abril de 1945, do governador Carlos de Sousa Gorgulho,
militar português da ala reacionária e conservadora que pusera fim, com o golpe
desencadeado pelo General Gomes da Costa em 28 de Maio de 1926, à 1ª República
Portuguesa.
Gorgulho trazia consigo dois grandes
objectivos, duas verdadeiras obsessões que se articulavam num plano que teria
de levar a cabo a qualquer custo:
·
Resolver o crónico problema da mão-de-obra com que se
confrontava a economia de STP, traduzido pela necessidade de importação, sob o
regime de contrato, de trabalhadores de outras colónias, perante a firme recusa
dos santomenses de trabalharem sob esse regime;
·
Em função da concretização deste objectivo, ser
nomeado para o cargo de Governador-Geral de Angola.
Para o efeito, durante os três primeiros
anos do seu mandato, Gorgulho procurou ganhar a estima da população, através de
uma governação verdadeiramente realizadora, como primeira etapa para a sua
reeleição: os passeios em carro descoberto, distribuindo rebuçados e guloseimas
pelas crianças, o sorriso constante nos lábios saudando a multidão, as obras de
reestruturação da cidade, fixação do salário mínimo para os trabalhadores do
comércio, indústria e agricultura, limitação do horário de trabalho, criação da
Escola das Artes e Ofícios, saneamento e aterro de pântanos, a terraplanagem de
pistas para aviões, reparação de estradas e construção de aquedutos, construção
de casas para funcionários, construção de um pavilhão de isolamento para
tuberculosos, etc.
O que terá então acontecido para
Gorgulho mudar a sua política de aproximação à população e enveredar pelo
caminho das rusgas e prisões por que se caracterizaria a partir daí a sua
governação, que iria redundar no massacre de 1953?
Vejamos as causas remotas desse trágico acontecimento:
·
A necessidade de mão-de-obra
Nos finais da década de 40, debatendo-se
elas próprias com graves problemas de escassez de mão-de-obra para o seu
desenvolvimento, as colónias fornecedoras de contratados, sobretudo Angola e
Moçambique, começaram a restringir a saída dos mesmos para S. Tomé e Príncipe.
Esta mesma época foi marcada pela baixa
de produção do café e do cacau, o que fez elevar no mercado internacional a sua
procura e, daí, os respectivos preços. Havia, pois, que intensificar a sua
produção e isso só era possível mediante o concurso de uma mão-de-obra
abundante e barata, isto é, através do recrutamento da mão- de-obra local. Ou
seja, os forros tinham forçosamente que trabalhar sob o detestável regime de
contrato.
Encontrando resistência, Gorgulho
recorreu à força: rusgas constantes, trabalhos forçados, espancamentos, prisão
arbitrária dos nativos.
·
A mentalidade de superioridade dos forros
No passado senhores de terras, do que
resultou a existência de uma importante elite que tanto no interior como em
Portugal se empenhou na defesa das respectivas populações, o forro, a quem
nunca foi atribuído o estatuto de indígena, considerava-se por isso superior
aos trabalhadores contratados das roças e mesmo aos europeus, sentimento que se
constituiu numa poderosa arma de oposição ao regime colonial.
·
A aversão dos serviçais contratados pelo facto de os
forros não trabalharem nas obras públicas e nas roças sob o regime de contrato,
não obstante as várias tentativas feitas após a abolição da escravatura (1875)
por governadores coloniais, a pedido dos proprietários brancos de grandes
latifúndios visando a contratação dos nativos.
·
Firme e persistente rejeição dos forros, sempre apegados ao
trabalho livre e de empreitada ou nas suas glebas.
·
As políticas falhadas de transferência de forros de
STP para outras paragens e de fixação no país de milhares de contratados de
Angola, Moçambique e Cabo Verde, esta última a levar à construção de
aldeamentos para o seu acolhimento: o objectivo consistia no significativo
aumento da população e na consequente diminuição da importância dos forros.
·
A ideia de liquidação da elite esclarecida e dizimação
da população forra.
·
A destruição da vida económica dos forros, através da:
- promulgação da
Portaria nº 32 de 1 de Julho de 1930, pela qual foi criado o imposto individual
indígena, o chamado imposto de cabeça;
- proibição de
extração e venda do vinho de palma (portaria de Janeiro de 1947);
- interdição do
fabrico e venda da aguardente de cana (portaria de Junho de 1947);
–erradicação de algumas
associações nativas (Associação dos Socorros
Mútuos e o Sporting Club de S. Tomé)
·
Trindade: Palco de oposição ao poder colonial:
- O incidente no dia de Deçu Padê (Junho
de 1900), com a morte de um santomense;
- Movimento dos soldados nativos do
Corpo de Polícia em 1921 contra europeus, com fortes repercussões na Trindade,
de que resultaram mortes.
- Incidentes em 1926 ocorridos na
eleição do Dr. Aires de Menezes a membro do Concelho Colonial, que redundaram
na destruição por europeus do recheio da sala da Liga dos Interesses Indígenas,
importante associação dos nativos.
- Fraca participação dos trindadenses
nas eleições presidenciais portuguesas (fraudulentas) de 1949.
- A recusa da população da Trindade em
ir receber Gorgulho no aeroporto aquando do seu regresso de Portugal em Outubro
de 1951.
- Trindade era, por
sua vez, residência do grande nacionalista e símbolo da resistência popular ao
domínio colonial, o Eng.º Salustino da Graça do
Espírito Santo, a quem Gorgulho imputava toda a rebeldia e a
irreverência da população local.
A estas causas vieram
juntar-se as seguintes causas próximas:
·
Carta dos naturais de STP enviada a 30 de Setembro de
1950 para o Ministro do Ultramar, dando-lhe conta das injustiças
praticadas por Carlos de Sousa Gorgulho contra a população nativa, o que
enfureceu sobremaneira o Governador
·
O descontentamento e a tensão provocados na
população forra pela entrevista dada em 8 de Janeiro ao
jornal Voz de S. Tomé pelo Inspector da Curadoria Geral dos Serviçais, Franco
Rodrigues, preconizando o nivelamento social, colocando no mesmo patamar
forros, angolares, minuiês e serviçais contratados das roças, prenunciando o
advento do contrato para todos.
·
A afixação de panfletos de revolta nas paredes de
diversos edifícios na cidade (madrugada do dia 2 de
Fevereiro), ameaçando de morte o Governador se ele permitisse
que tal viesse a ocorrer.
·
Nota oficiosa do Governador desmentindo a
ideia de pretender contratar os nativos (Início da tarde do dia 2 de
Fev).
·
Destruição de muitas das citadas notas
oficiosas, sobretudo na Trindade.(manhã de 3 de Fevereiro).
OS PRIMEIROS
ACONTECIMENTOS
·
A morte de Pontes por José Mulato, que chefiava a
primeira equipa de rusga na Trindade, que tinha como incumbência descobrir os
autores dos panfletos e quem tinha rasgado as notas oficiosas (dia 3 de Fev., pelas 22horas).
·
Interrogatório e prisão do Eng.º Salustino
Graça, de imediato enviado para o Príncipe, em companhia de outros presos. (madrugada do dia 4).
·
Rusgas ferozes na Trindade e suas localidades feitas por polícias
recrutados dentre criminosos, contratados das roças e por voluntários brancos e
mestiços armados à caça do forro. Casas incendiadas, perseguições, prisões de
inocentes, mortes. A população aterrorizada escondendo-se no mato (Dia 4 de Fev.)
·
A morte do alferes Jorge Amaral por Zé Cangolo (manhã
de 4 de Fevereiro).
·
A partir daí, o cortejo de barbaridades por todos conhecido: intensificaram-se as
rusgas, as batidas nos matos de Trindade e arredores, a caça aos nativos
desprotegidos e entregues à sua sorte, as suas casas incendiadas, os bens
roubados, ondas de terror à solta.
Multiplicaram-se as prisões, as
humilhações, as torturas, as correntes nos pés, na cintura e no pescoço, os
choques eléctricos, as confissões forçadas, as mortes por asfixia.
Sobre mais de mil santomenses recaiu
então o peso da morte, na Trindade e nas celas do Corpo da Polícia e em Fernão
Dias. Vidas ceifadas pela irracionalidade e pela intolerância, que tudo
procuravam destruir à sua passagem.
Protegidos pelo
isolamento das ilhas e movidos pelo mais odioso intuito de repressão, que a
impunidade tanto contribuía para estimular, os algozes divertiam-se com a
angústia de cidadãos brutalizados e despojados do seu inalienável direito à
tranquilidade e à paz. Impunidade que só encontraria fim com a vinda, em 4 de Março de 1953, de uma delegação da PIDE, que
desmentiu a versão de Gorgulho segundo a qual os bárbaros acontecimentos se
prendiam com a necessidade de combater uma revolta comunista preparada pelos
nativos e, sobretudo, com a chegada ao país, em 25 do mesmo mês, do
famoso jurista português Dr. Manuel João da Palma
Carlos, a convite da família Graça do Espírito Santo, tendo
como finalidade tratar da libertação dos presos, o que viria de facto a
conseguir.
Mas, infelizmente antes disso, para
alguns destes, o fim estava inevitavelmente traçado. Os seus gritos aflitivos,
cortantes como lâminas, encheram então as imediações do Corpo de Polícia, bem
como o espaço solitário de Fernão Dias. O mar e a terra acolheram então,
impotentes, os seus corpos martirizados e desfalecidos.
Noutros, vítimas das mais horríveis
crueldades, a prisão deixou marcas indeléveis e encurtou o percurso de uma vida
lesada pela mais degradante e repulsiva violência.
Outros ainda, os que restam de tão
vergonhosa tragédia, continuam juntos de nós, testemunhas dolorosas de uma
época que a marcha implacável do tempo como que nos leva a esquecer e
banalizar.
A todos eles nos cumpre o dever de
homenagear e resgatar a memória, pela grandeza do seu gesto e pela forma
generosa como se empenharam para reforçar em nós o sentimento colectivo de
nação, que o seu sacrifício tanto contribuiu para cimentar.
Por eles, pelo sacrifício que
consentiram para que esse sentimento se revelasse de forma tão dinâmica e congregadora,
construamos um país solidário e fraterno, centrado nas suas raízes, mas aberto
ao contributo de outros povos e civilizações. Um país soberano, democrático e
preocupado com o desenvolvimento humano, que se reveja na sua memória colectiva
e entenda a história como a interpenetração dinâmica do passado, do presente e
do futuro. Um país constituído por um povo que deve manter-se firme nas suas
convicções, que delas não abdique por dinheiro ou benesses afins, digno da
grandeza e da dignidade de que eles, em circunstâncias tão difíceis, foram
capazes de demonstrar.
Façamo-lo assim, de
modo a comungarmos com Francisco José Tenreiro e com ele dizer ao mundo: ” Os
teus filhos não morreram, Mãe, Eu oiço um
rio de almas reluzentes cantando: nós não
nascemos num dia sem sol ”.
Téla Non