Por Luísa Fresta
Um filme de Sérgio Graciano
Uma
produção grandiosa e visualmente deslumbrante sobre esta soberana de Angola que
reinou durante cerca de quatro décadas, referência histórica incontornável cujo
percurso, motivações e carisma têm sido objecto de interesse de investigadores
vários do período da colonização e das práticas esclavagistas, entre antropólogos
e historiadores, e também de romancistas[1].
Esta
longa-metragem, com uma notória dimensão política e cultural, digamos etnográfica,
conta com um extenso elenco e envolve uma equipa pluridisciplinar, recorrendo,
necessariamente, a consultores históricos; trata-se de uma ambiciosa obra
cinematográfica assegurada por uma sólida estrutura composta de portugueses e angolanos
(entre outros, os actores António Fonseca, António Durães, José Fidalgo, Ana
Santos, Erica Chissapa, Sílvio Nascimento, Miguel Hurst, Jaime Joaquim e
Orlando Sérgio), e restante equipa técnica.
Lesliana
Pereira (também Miss Angola 2008 e apresentadora de TV), foi premiada na categoria de melhor atriz principal pela Academia
de Cinema Africano (AMAA) na sua XIª edição, pelo papel da Rainha
Njinga, mas o filme integra também outros actores bem conhecidos do público e
que emprestaram o seu enorme talento a este épico.
A
autora do guião (a mesma que assinou o argumento da telenovela luso-angolana «Windeck
– O Preço da Ambição») é Joana Jorge, e o seu nome no genérico deixa antever,
deste logo, um texto que alia gosto pelo detalhe a entretenimento.
Uma
palavra para destacar a belíssima banda sonora a cargo do músico Rodrigo Leão e
a direcção de fotografia de Rui Amado, proporcionando imagens de uma beleza de
cortar o fôlego, explorando com arte a exuberante geografia de Angola, país
onde o filme foi rodado na íntegra.
A
preocupação em desdobrar muitos dos diálogos em português e em Kimbundu poderá
porventura ter acrescentado alguma sobrecarga ao texto embora se compreenda
claramente a intenção primeira, que seria, entre outras, a de conferir mais
autenticidade às falas dos personagens e tornar as cenas mais verosímeis do
ponto de vista histórico.
Sobre
o filme, denso e pormenorizado, que começa aquando da morte de Ngola[2] Kiluanji Kiassamba, pai de
Nzinga Mbandi, então princesa, considero que a obra procurou ser fiel aos
registos históricos acrescentando a necessária ficção de forma a converter esta
época histórica numa narrativa cinematográfica também interessante como produto
industrial de entretenimento.
A história dentro da
História: após
a morte do soberano seu pai, em 1617, Nzinga (1581-1663) não seria a herdeira
natural do trono. O conselho dos makota decide a favor do seu irmão Mbandi,
preterindo outro dos irmãos por ser filho de uma escrava e a própria Nzinga,
por ser mulher, embora as suas qualidades de guerreira sejam unanimemente
reconhecidas. No entanto, após um reinado atribulado do seu irmão, marcado
sobretudo pela prepotência, Nzinga acaba por se impor pelas suas qualidades de ardilosa
estratega, hábil negociadora e também líder natural, possuidora de um forte
carisma e de uma visão global do contexto da época, demonstrando habitualmente
uma postura conciliadora acerca das relações de poder dentro da família. Nzinga
parecia saber eclipsar-se e agir na sombra quando tal lhe parecia ser o
interesse superior do seu povo.
Ela
combateu a presença portuguesa fazendo pequenas cedências e provando ser uma
diplomata nata quando negociava a paz com os portugueses, enviada em missão
pelo seu irmão (recorde-se que Nzinga aceitou ser baptizada, adoptando o nome de
Ana de Sousa) em prol do que considerava um bem maior: a autonomia do seu povo,
os Mbundu; sempre defendeu essa posição recusando-se a prestar vassalagem pois,
como afirmava, “Um reino não pode ser vassalo de outro reino”. Nzinga ficou
também conhecida por colocar o amor ao seu povo acima dos próprios afectos
pessoais e relações familiares, excepção feita à memória do seu pai, que
venerava, e de quem procurou sempre seguir o exemplo e os valores.
O
distanciamento no tempo e o facto de se tratar de um produto de ficção, neste
caso através da linguagem do cinema, permitem uma liberdade que ultrapassa o tratamento
histórico dos documentos e da Academia, ainda que mesmo este seja muitas vezes
questionado e debatido entre investigadores com visões díspares ou antagónicas.
Neste filme aparece retratada uma visão próxima da que poderá ser a dos
angolanos face a este período da sua própria História, o que por si só já lhe
confere mérito e interesse, por se falar na primeira pessoa e se apresentar uma
leitura descritiva e analítica dos factos e algumas das suas ramificações.
O
filme retrata parte do reinado de Nzinga Mbandi, as suas relações com súbditos,
antagonistas, aliados e família, bem como as suas habilidades de negociadora, constantemente
evidenciadas. Ela é descrita como uma mulher de visão, altaneira e ponderada, para
além de uma guerreira de destreza física fora do comum, que nunca se deixou
capturar. Sempre pronta a tudo sacrificar pelo seu povo.
Nzinga
era uma hábil política que agia e reagia frequentemente em função do momento e
das conveniências temporais não hesitando em estabelecer alianças ou desfazê-las,
caso fosse necessário, se tal se revelasse benéfico para o povo Mbundu, como
aconteceu com ao guerreiros Jagas, conotados com uma violência exacerbada e
prática de pilhagens, como aconteceu também com os portugueses e com os
holandeses. Os inimigos eram sobretudos “adversários”, os amigos eram
essencialmente “aliados”, e dentro da própria família os laços de sangue não
lhe garantiam necessariamente uma confiança absoluta nas pessoas, à parte o pai
e duas irmãs que a acompanharam sempre partilhando com ela a solidão a que o poder
conduz. E também Kanjila, seu filho, “pássaro” de destino etéreo.
Opondo-se
acerrimamente ao crescente domínio português e à consequente perda progressiva
de soberania, Nzinga, conhecida por muitos outros nomes e reconhecida por uma
série infindável de façanhas romanescas, era uma mulher que sabia impor-se
entre os que pretendiam reduzi-la, a si e ao seu povo a uma condição de submissão
e total dependência. Ela acordava
alianças que considerava vantajosas ou razoáveis: nunca vassalagens.
Alguns
episódios caricatos ficaram para a História, como pequenos apontamentos
reveladores do carácter da rainha no tempo que lhe coube viver e no espaço que
lhe coube ocupar. Um deles foi a célebre cena da “cadeira”, a escrava sobre a
qual se sentou aquando do seu encontro com o governador português em Luanda. Ao
partir, a rainha Nzinga sublinhou que não levaria a escrava consigo,
explicando-se: “não é conveniente que a Embaixadora do reino do
Ndongo use duas vezes o mesmo assento”; sem dúvida uma forma de
mostrar a sua superioridade no trato perante aqueles que a queriam tratar como
vassala, embora com alguma condescendência e contida admiração. Ela sabia como
ninguém transformar fragilidades em vantagens e reverter o jogo a seu favor. À
maneira dos grandes estrategas não se melindrava nem se ofendia por pouco,
antes procurava todo e qualquer consenso estrategicamente aceitável. O trajeto
desta mulher de destino excepcional deve ser visto à luz da época e devidamente
inserido no seu contexto, sem julgamentos apressados, condicionados ou
falaciosos.
A mega produção a cargo
de Coréon Dú, Sérgio Neto e Renato Freitas (Semba
Comunicação), vale também por nos trazer um pedaço da nossa História
contada na perspetiva angolana, sabendo que a História não se cinge a factos –
os quais se baseiam no acervo documental – mas sobretudo à sua vivência, contextualização
e interpretação.
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