terça-feira, 20 de outubro de 2015

«NJINGA, RAINHA DE ANGOLA» - produção deslumbrante

Por Luísa Fresta

 
Um filme de Sérgio Graciano

Uma produção grandiosa e visualmente deslumbrante sobre esta soberana de Angola que reinou durante cerca de quatro décadas, referência histórica incontornável cujo percurso, motivações e carisma têm sido objecto de interesse de investigadores vários do período da colonização e das práticas esclavagistas, entre antropólogos e historiadores, e também de romancistas[1].
Esta longa-metragem, com uma notória dimensão política e cultural, digamos etnográfica, conta com um extenso elenco e envolve uma equipa pluridisciplinar, recorrendo, necessariamente, a consultores históricos; trata-se de uma ambiciosa obra cinematográfica assegurada por uma sólida estrutura composta de portugueses e angolanos (entre outros, os actores António Fonseca, António Durães, José Fidalgo, Ana Santos, Erica Chissapa, Sílvio Nascimento, Miguel Hurst, Jaime Joaquim e Orlando Sérgio), e restante equipa técnica.
Lesliana Pereira (também Miss Angola 2008 e apresentadora de TV), foi premiada na categoria de melhor atriz principal pela Academia de Cinema Africano (AMAA) na sua XIª edição, pelo papel da Rainha Njinga, mas o filme integra também outros actores bem conhecidos do público e que emprestaram o seu enorme talento a este épico.
A autora do guião (a mesma que assinou o argumento da telenovela luso-angolana «Windeck – O Preço da Ambição») é Joana Jorge, e o seu nome no genérico deixa antever, deste logo, um texto que alia gosto pelo detalhe a entretenimento.
Uma palavra para destacar a belíssima banda sonora a cargo do músico Rodrigo Leão e a direcção de fotografia de Rui Amado, proporcionando imagens de uma beleza de cortar o fôlego, explorando com arte a exuberante geografia de Angola, país onde o filme foi rodado na íntegra.
A preocupação em desdobrar muitos dos diálogos em português e em Kimbundu poderá porventura ter acrescentado alguma sobrecarga ao texto embora se compreenda claramente a intenção primeira, que seria, entre outras, a de conferir mais autenticidade às falas dos personagens e tornar as cenas mais verosímeis do ponto de vista histórico.
Sobre o filme, denso e pormenorizado, que começa aquando da morte de Ngola[2] Kiluanji Kiassamba, pai de Nzinga Mbandi, então princesa, considero que a obra procurou ser fiel aos registos históricos acrescentando a necessária ficção de forma a converter esta época histórica numa narrativa cinematográfica também interessante como produto industrial de entretenimento.
A história dentro da História: após a morte do soberano seu pai, em 1617, Nzinga (1581-1663) não seria a herdeira natural do trono. O conselho dos makota decide a favor do seu irmão Mbandi, preterindo outro dos irmãos por ser filho de uma escrava e a própria Nzinga, por ser mulher, embora as suas qualidades de guerreira sejam unanimemente reconhecidas. No entanto, após um reinado atribulado do seu irmão, marcado sobretudo pela prepotência, Nzinga acaba por se impor pelas suas qualidades de ardilosa estratega, hábil negociadora e também líder natural, possuidora de um forte carisma e de uma visão global do contexto da época, demonstrando habitualmente uma postura conciliadora acerca das relações de poder dentro da família. Nzinga parecia saber eclipsar-se e agir na sombra quando tal lhe parecia ser o interesse superior do seu povo.
Ela combateu a presença portuguesa fazendo pequenas cedências e provando ser uma diplomata nata quando negociava a paz com os portugueses, enviada em missão pelo seu irmão (recorde-se que Nzinga aceitou ser baptizada, adoptando o nome de Ana de Sousa) em prol do que considerava um bem maior: a autonomia do seu povo, os Mbundu; sempre defendeu essa posição recusando-se a prestar vassalagem pois, como afirmava, “Um reino não pode ser vassalo de outro reino”. Nzinga ficou também conhecida por colocar o amor ao seu povo acima dos próprios afectos pessoais e relações familiares, excepção feita à memória do seu pai, que venerava, e de quem procurou sempre seguir o exemplo e os valores.
O distanciamento no tempo e o facto de se tratar de um produto de ficção, neste caso através da linguagem do cinema, permitem uma liberdade que ultrapassa o tratamento histórico dos documentos e da Academia, ainda que mesmo este seja muitas vezes questionado e debatido entre investigadores com visões díspares ou antagónicas. Neste filme aparece retratada uma visão próxima da que poderá ser a dos angolanos face a este período da sua própria História, o que por si só já lhe confere mérito e interesse, por se falar na primeira pessoa e se apresentar uma leitura descritiva e analítica dos factos e algumas das suas ramificações.
O filme retrata parte do reinado de Nzinga Mbandi, as suas relações com súbditos, antagonistas, aliados e família, bem como as suas habilidades de negociadora, constantemente evidenciadas. Ela é descrita como uma mulher de visão, altaneira e ponderada, para além de uma guerreira de destreza física fora do comum, que nunca se deixou capturar. Sempre pronta a tudo sacrificar pelo seu povo.
Nzinga era uma hábil política que agia e reagia frequentemente em função do momento e das conveniências temporais não hesitando em estabelecer alianças ou desfazê-las, caso fosse necessário, se tal se revelasse benéfico para o povo Mbundu, como aconteceu com ao guerreiros Jagas, conotados com uma violência exacerbada e prática de pilhagens, como aconteceu também com os portugueses e com os holandeses. Os inimigos eram sobretudos “adversários”, os amigos eram essencialmente “aliados”, e dentro da própria família os laços de sangue não lhe garantiam necessariamente uma confiança absoluta nas pessoas, à parte o pai e duas irmãs que a acompanharam sempre partilhando com ela a solidão a que o poder conduz. E também Kanjila, seu filho, “pássaro” de destino etéreo. 
Opondo-se acerrimamente ao crescente domínio português e à consequente perda progressiva de soberania, Nzinga, conhecida por muitos outros nomes e reconhecida por uma série infindável de façanhas romanescas, era uma mulher que sabia impor-se entre os que pretendiam reduzi-la, a si e ao seu povo a uma condição de submissão e total dependência. Ela acordava alianças que considerava vantajosas ou razoáveis: nunca vassalagens.
Alguns episódios caricatos ficaram para a História, como pequenos apontamentos reveladores do carácter da rainha no tempo que lhe coube viver e no espaço que lhe coube ocupar. Um deles foi a célebre cena da “cadeira”, a escrava sobre a qual se sentou aquando do seu encontro com o governador português em Luanda. Ao partir, a rainha Nzinga sublinhou que não levaria a escrava consigo, explicando-se: “não é conveniente que a Embaixadora do reino do Ndongo use duas vezes o mesmo assento”; sem dúvida uma forma de mostrar a sua superioridade no trato perante aqueles que a queriam tratar como vassala, embora com alguma condescendência e contida admiração. Ela sabia como ninguém transformar fragilidades em vantagens e reverter o jogo a seu favor. À maneira dos grandes estrategas não se melindrava nem se ofendia por pouco, antes procurava todo e qualquer consenso estrategicamente aceitável. O trajeto desta mulher de destino excepcional deve ser visto à luz da época e devidamente inserido no seu contexto, sem julgamentos apressados, condicionados ou falaciosos.
A mega produção a cargo de Coréon Dú, Sérgio Neto e Renato Freitas (Semba Comunicação), vale também por nos trazer um pedaço da nossa História contada na perspetiva angolana, sabendo que a História não se cinge a factos – os quais se baseiam no acervo documental – mas sobretudo à sua vivência, contextualização e interpretação.


[1] A Rainha Ginga  de José Eduardo Agualusa e Zingha, Reine d’Angola: Histoire Africaine  de Jean-Louis Castilhon.
[2] Ngola: título que corresponde ao Rei e que deu origem à palavra Angola.

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